quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

E para não dizer que faltei com o humor, eis um pouco do que vem lá das bandas da África Oriental, mais exatamente da melhor prosa de Moçambique, porque ninguém é de ferro…

Boa leitura ! Mione**




As medalhas trocadas


Transcrevo agora uns capítulos da vida de Zeca Tomé, homem de mais acaso que destino. Estava ele no embalo da sua inocência quando chegou a notícia: por feitos de bravura ia ser condecorado. Zeca riu-se: eu ? Sim, ele proprioíssimo. Medalhado no Dia da Raça. Zeca desdenhou. Ele, sempre esquecido, por que motivo seria agora maisprezado ? Explicaram: é o senhor administrador que está-te chamar, precisa de você no tal dia, o exacto dez de Junho.

- Vai dizer ao senhor diministrador que parece há uma confusão. Há outro Tomé aqui, a medalha deve ser para esse.

O mensageiro declarou que o tempo era mais curto que a sua língua, razão que aquilo merecia as pressas. Fosse um ou outro Tomé, para o caso nem interessava. Ele mesmo que lhe acompanhasse à cidade, vestido de boas maneiras.

E foi assim que Zeca Tomé foi condecorado, em cerimónia de praça, raça e canhões.

(…) Os tempos sucederam-se, dobraram-se calendários. Zeca Tomé vivia com suas pazes, inquilino do sossego… Naquela tarde, quando as coisas já entravam em suas penumbras, Zeca recebeu inesperada visita:

- Sou eu o autêntico Tomé. Venho buscar a minha medalha.

- A medalha nem eu sei, irmão. Se para pagar a despesa de reparação do meu casaco tive de vender a medalha ao alfaiate! Trocaram azedas palavras, o outro desatou-se a espumar ameaças…

Zeca e o alfaiate desceram ao calabouço. Para infelicidade do primeiro, os dois foram ambos postos na mesma cela. Pois que o alfaiate, furiabundante, tirou-lhe por repetidas vezes as medidas dos seus costados.

O tempo rodopiou, esbanjando os dias. Já a Independência tinha subido aos mastros e o País se registrara com nome próprio. Em seu novo canto, o Zeca gozava agora de bastas honrarias. Ele ascendera a herói da luta contra o colonialismo. Seus anos de cela, ainda que breves, rendiam agora juros. Zeca recebia os tributos: graças, cargos, cartões. Estava dispensado de ser cidadão, sofrer as vulgares dificuldades…

Novembro distribuía as primeiras chuvas quando a delegação chegou. Era uma dessas, dos países socialistas, aliados naturais. Convocaram o Zeca Tomé.

- Você, camarada Zeca, você também consta da lista.

Na lista, a qual ? A dos condecorados pelo Presidente Jivkov. Mas, desculpem os camaradas, esse homem nunca me foi visto…

- Não, é por causa os mil e trezentos anos.

Mas eu nem aos quarenta não cheguei, contrargumentiu o Zeca, aflito com a vigente confusão. Você nunca ouviu falar a Bulgária, terra onde se descobriram os iogurtes ?

- Nunca, nunca…

Não quiseram saber mais. Era ordem das estruturas bastante superiores. No dia seguinte, o nosso homem estava lá, gravatado, em cerimónia internacionalista e proletária…

E, de novo, o tempo se espraiou. Zeca continuava melhor, sem calamidade que lhe atrapalhasse.
Certa vez, o alfaiate se apresentou com estranhas falagens. O assunto era confuso : um julgamento de corruptos. Não percebo, corruptos em Moçambique ?

O alfaiate rectificou: a coisa ocorria longe, envolvendo o dito Jivkov, o tal que distribuía medalhas a milcentenários.

- Você se desfaça dessa medalha, para evitar confusão.

Era o conselho do alfaiate…

- Mas eu não tenho nada com esse estrangeiro.

- Você não entende de noticiário, vizinho. É que lá na Bulgária estão envergonhadíssimos com esse Tudor, parece que ele era um açambarcador de iogurtes. Agora estão a tirar a limpeza dos pratos, ainda vão dizer que você está comprometido.

- Mas como, eu que nunca saí do distrito ?

- Não interessa, nunca ouviu falar de conflitos internacionais ?

Zeca sentiu o azedo da mandioca. (…) Fizessem ou não o combinado, uma coisa é certa: Zeca Tomé não esperou o desfecho do acaso. O distrito já lhe parecia pequeno, incapaz de lhe dar esconderijo perante as tribulações deste mundo. E, sem que houvesse testemunho, ele se retirou de sua terra natal, antes que o lugar comemorasse mil e trezentos anos.

[Mia COUTO, em Cronicando. Lisboa, editorial Caminho, Coleção Outras Margens, 1991.]

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*Socialização Mione Sales
Professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, doutora em Sociologia e licenciada em Literatura Comparada.

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