domingo, 25 de outubro de 2009

EXISTIRMOS, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA






















[René Magritte]



Dentro da série de reflexões sobre o binômio "consumo e mídia" e movidos pela perspectiva de defesa da autonomia dos sujeitos e da cidadania como direito a uma livre e diversificada oferta cultural, ao lazer e às experiências de criação individual e comunitária, (re)publicamos aqui uma crônica de Frei Betto. Ela vem se somar aos preciosos argumentos do prof. Mário Sérgio Cortella e do documentário "Criança: a Alma do Negócio", cujos links recentemente divulgamos, convidando os leitores do blog a assisti-los ("12 de outubro" - A pureza da resposta das crianças). Tamanha é a atualidade do texto de Frei Betto que o artigo poderia ter sido escrito ontem, mas não o foi. Deixemos, então, que vocês, blogonautas do nosso Mídia & Questão Social, se deleitem, primeiro, com a pluma crítica do ex-dominicano, autor de Batismo de Sangue - o qual mergulha filosófica e politicamente na imensidão das águas da pergunta do poeta Caetano Veloso -, para depois conferirem onde e quando essa crônica foi publicada.

Um abraço,
Equipe do Blog Mídia & Questão Social

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CONSUMO, LOGO EXISTO -
Frei Betto

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome.
Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse.
O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.
A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.
É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.
A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.
Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.
Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens".
Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.
Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignar o da pobreza e à cultura da exclusão.
Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essainteração matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux.
A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela...
Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberalnos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privadosdesse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia.
Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.
Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações devizinhança, como ainda ocorre na feira.
Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maiorque a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo umpasseio socrático", respondo. Olham-me intrigados.
Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".


Publicada em 22/09/2006. Confiram também no link abaixo :http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=24552]

3 comentários:

  1. Do que comemos e vestimos, pra dizer o menos, cada vez mais decidimos de modo alienando, ou melhor, não decidimos, acatamos decisões. Nossas vontades, cada vez mais emanam de agencias de publicidade. O que queremos, o que temos vontade de fazer, de ser na vida, e do que comer, cada vez mais é uma volição alienada, à revelia de nós mesmos e desencadeada por “mestres”da propaganda.
    A própria propaganda hoje é coisa chique. Existem programas de rádio e tv que têm como foco a propaganda. Estar antenado é conhecer as grandes campanhas publicitárias, que arrebanham zilhões (em $ e em cabeças) pelo mundo.
    O que cada vez mais se torna chato, é falar contra tudo isso. Ou é coisa de gente reclamona, ou de quem quer aparecer. Sinal dos tempos.
    Um abraço.

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  2. Humberto,como você pode ou deve ter visto nos videos, parece que os "resmungões" e "reclamões" aumentam pouco a pouco. Aqui na França tem um movimento que começa a ganhar fôlego - tb com conexão ambiental - por uma desaleceração do crescimento (décroissance et déconsommation). São movimentos afins. Senão, penso que, sem pesar, poderemos engrossar a fala de Lévi-Strauss: esse mundo "consumista e voraz" não é o mundo que eu sonhei e tentei mudar. Espero que esse desinteresse pelo nosso mundo ainda demore e que persista a resistência e a confiança num outro futuro para todos. Abraços, Mione Sales*

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  3. Frei Beto expõe com clareza todo o processo de sedução da mercadoria, bem como a construção social do indivíduo consumidor. Tal lógica perpassa as distintas classes sociais, tornando o consumir o ethos que vigora. Certamente, o caminho da resistência vincula-se a reconstrução de valores outros, numa tarefa diuturna de todos que ainda apostam numa outra forma de viver!!! Abração. Maria Helena

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