quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Editoria Jornalismo na Correnteza

Apagão jornalístico

Ana Lucia Vaz

Rio de Janeiro, 10 de novembro. Lá estava eu jantando diante da televisão. A luz variou, a TV foi e voltou e foi de vez. Confesso que me escapou um sorriso de satisfação ao ver a imagem virar aquele filetezinho de luz e apagar-se de vez. O resto da refeição foi especialmente agradável, livre das abobrinhas do Casseta&Planeta. E, o que é melhor, conversando tranquilamente com minha mãe, sem nenhum chato para dividir nossa atenção.
A refeição acabou, seguimos conversando e fomos descobrindo, entre um telefonema e outro, que a falta de luz era, na verdade, um apagão de dimensões nacionais.Quando fui deitar, não resisti a ouvir o rádio para “saber melhor o que estava acontecendo”. Pobre iludida! Era evidente que os radiojornalistas não sabiam nada e se revezavam na leitura de e-mails, torpedos e sei lá mais o quê que lhes enviavam os ouvintes. Um jornalista entra no ar, de uma rua de São Paulo. Ligou para os parentes e descobriu outros bairros e cidades sem luz. Outra jornalista envia uma fotografia tirada de uma rua movimentada de São Paulo, iluminada apenas pelos faróis dos carros. A âncora descreve a foto.
Eu pensava no livro de um jornalista (não lembro qual) que constatava que quase todas as matérias publicadas pelos jornais são produzidas a partir de fatos previsíveis, que permitem uma cobertura planejada. O que sai do planejamento costuma provocar caos na cobertura. O jornalismo é muito mais burocrático e previsível do que nos faz crer a mítica da profissão.
Sem planejamento, os âncoras gaguejavam, se repetiam à exaustão, e impostavam num tom de voz agitado. Mas quem viveu o apagão em casa, ou nas ruas, em geral viu e sentiu muita coisa, menos agitação. No máximo medo. Imagino que o pessoal engarrafado na linha amarela, no Rio de Janeiro, deve ter ficado apreensivo. Em São Paulo também.
Uma moça que mora em Nova Iguaçu me falou do medo de andar até sua casa no breu: “Uma senhora que saltou do ônibus na minha frente, torceu o tornozelo porque não enxergou o buraco!” Outras histórias colhidas, no dia seguinte, eram deliciosas. Um amigo que mora em Niterói me contou do espetáculo da viagem de barca com Rio e Niterói no escuro. No ônibus ouvi a moça contando que o filho aproveitou pra ir com um amigo tomar banho de mar pelado. Que inveja!
Na rua em frente à minha casa, nunca houve tanto silêncio. Os carros passavam lentos, cuidadosos. A rua pouco a pouco foi se aquietando. Pela primeira vez na vida, ouvi grilos cantando por aqui. Mas no rádio, o pessoal continuava agitadíssimo. Imperava o astral de grande acontecimento. E, no jornalismo, grande acontecimento já é quase catástrofe.
Entre as informações repetidas, muita recomendação para não saírmos de casa. "Porque os sinais não estão funcionando". É perigoso. É perigoso! É perigoso... Afinal, uma jornalista não resistiu e mergulhou de cabeça no sentido de tragédia que domina o mundo da notícia. Se não há catástrofe, a gente imagina! Diante da foto dos carros engarrafados na rua escura (e da falta de assunto), deixou escapar seu medo (ou desejo inconsciente?): “há risco de arrastões”.
Dei um pulo na cama. Desliguei imediatamente o rádio, quase sem acreditar no que tinha ouvido. Fui até a janela ouvir os grilos que se impunham deliciosos na rua deserta e silenciosa. Tateando pela mobília da casa, cheguei à outra janela para ver o trânsito. Poucos carros, circulando numa delicadeza inusitada. Me esforcei para abrir bem os olhos e ouvidos às imagens e ruídos suaves e tranqüilos da realidade ao meu redor. Levou algum tempo até que meu coração também voltasse à realidade concreta e se recuperasse da tensão neurótica que me chegou pelo rádio.

*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net/), professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.

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