quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

«Alguma coisa está fora da ordem »:
suicídio e trabalho na França






Vieira da Silva (1908 - 1992)


Christophe Dejours - psicanalista e professor do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM) -, conhecido do público brasileiro por livros como A Loucura do Trabalho e A Banalização da Injustiça Social, vai mais uma vez ao cerne da questão social do trabalho na contemporaneidade, com o livro Suicide et Travail : que faire ? (Puf, 2009), escrito a quatro mãos com Florence Bègue. Esta última – psicóloga do trabalho e consultora de empresas - ocupou-se sobretudo da segunda parte do livro, « Uma intervenção numa empresa do setor industrial após suicídios ».

Esse livro vem se somar às reflexões produzidas por centros de estudos e observatórios acerca das recentes taxas de suicídio no trabalho, as quais têm alarmado a opinião pública francesa, sobretudo depois dos midiatizados casos da France Telecom. Em pouco mais de um ano, foram já 25 casos, sem falar nas tentativas. O problema não diz respeito apenas à gigante francesa das telecomunicações, mas está presente em outros ramos, inclusive o da construção civil e siderurgia. Dejours traça uma curva ascendente do fenômeno que começa a ser observado a partir do começo dos anos 90 e atingiria agora um ponto máximo de visibilidade. Reconhecido como um tema tabu e recalcado muitas vezes como algo apenas da esfera da subjetividade e psiquismo de cada um, o mal-estar no trabalho expresso pela opção-limite e radical do suicídio forçou passagem no debate público na França, a partir da série de casos registrados em 2007, em empresas como Renault, Peugeot et EDF (Cia de Eletricidade da França).

Algo de muito sério vem, pouco a pouco, alterando a fisionomia de um país que construiu, ao longo do século XX, toda uma regulação social e estatuto de cidadania em torno do trabalho, calcada - para os padrões brasileiros - numa rígida divisão social do trabalho, conformando valores, identidades e um verdadeiro modo de ser do trabalho. Trazida pelos ventos que começaram a soprar na economia mais abertamente depois da Queda do Muro de Berlim, a apoteose dos modelos de reestruturação administrativas (managériales) do trabalho vai repercutir profundamente sobre a psique dos trabalhadores, e cujos desdobramentos mostrar-se-ão como cartas de dominó, caindo encadeadas. Os trabalhadores franceses saltam assim de uma situação de segurança no emprego e na confiança do seu valor e papel a ser desempenhado, para a insegurança permanente como objeto da estratégia de controle da produtividade assentada na « gestão do stress ».

Problemas de depressão ligados ao trabalho não chegam, assim, segundo Dejours, a ser uma novidade, no entanto antes não se constatava este tipo de « passagem ao ato ». A agricultura é, por exemplo, uma das áreas historicamente com maior grau de sofrimento no trabalho e também mortalidade no quesito suicídio, em razão da enorme fadiga e isolamento. Se ali as mulheres são as que mais cometem tais tentativas, os homens são os que mais o efetivam de fato. [Pessoalmente, já havia verificado essa tendência, em trabalho de supervisão de Serviço Social na área rural, no Noreste Fluminense (RJ), onde é elevado o grau de consumo de psicotrópicos por trabalhadores e trabalhadoras do campo.] Na França, uma outra categoria que merece atenção é a dos operários, com incidência de suicídio em ambos os sexos.

Todavia, Dejours diz que o aumento dos casos, ou senão a sua maior visibilidade - estudada por ele com base em teorias e metodologias de psicodinâmica do trabalho -, é relativamente recente. O que teria, então, alterado as estratégias de defesa individuais e coletivas no espaço do trabalho, concorrendo para uma quebra da solidariedade e consequente intensificação do sofrimento psíquico ?

Cabe uma pequena pausa filosófica para dizer que historicamente o trabalho sempre teve uma associação indireta com o castigo, como o demonstra o termo do qual se origina a palavra trabalho, tripalium, primeiramente um instrumento de suplício para os romanos, depois uma ferramenta ligada ao trato do gado no campo. Isto quer dizer que o trabalho traz na etimologia da palavra e no inconsciente coletivo da humanidade elementos de uma experiência vivida como obrigação e dominação. O termo em latim laborare, num primeiro momento, parece mais alvissareiro, porque vai conotar as ideias de « valorizar » e « cultivar », mas também poderá significar « se fazer mal ». Em francês antigo, labor será aflição, pena e infelicidade, ou ainda um trabalho penoso, como o da agricultura.

Mesmo se a artista plástica Fayga Ostrower destaca a presença de uma carga de tensão psíquica em todo processo de criação, a problemática do suicídio no trabalho extrapola qualquer referência ao ócio criativo e à liberdade, expressando muito mais um quadro de anulação do sujeito (paradoxalmente também considerada, em certas condições, a única forma de libertação pessoal possível) e a quebra dos laços sociais, como a camaradagem e a cooperação entre colegas e equipe. Vimos, segundo Dejours, que o sofrimento no trabalho, portanto, não é algo novo, como atestam suas obras já citadas, mas o que é novo na situação atual ?



«Nada de pessoal»: trabalho e condição humana contemporânea



Acha-se em cartaz em Paris um filme intitulado « Rien de personnel » (2008), de Matias Gopalk, que mostra bem o clima das relações interprofissionais nos locais de trabalho. Nada mais moderno, portanto, do que a alta concorrência entre empresas no mercado mundializado. Nada mais impessoal, por sua vez, que as novas políticas de avaliação e controle das performances do trabalho individual. A França espelha hoje o mal-estar de uma época, aquela do capitalismo financeiro e da reestruturação produtiva. Trata-se de uma sociedade que salta do tabu do suicídio, estudado pelo velho Durkheim, para o seu estampamento nas manchetes de jornais, no entanto a ocorrência deste fenômeno, tantas vezes reduzido à somatização de dramas individuais, requer uma avaliação criteriosa, mesmo porque o local de trabalho, a cada caso, é afetado como um todo. O impacto de uma morte suscita o silêncio do estarrecimento e da incompreensão, mas não pode de maneira alguma cair na esfera da banalização e do acontecimento corriqueiro. Não se trata, portanto, de apenas mais um risco ao qual todos devem se precaver e adaptar.


Dejours alerta que um só caso, em si, é suficiente para demonstrar a gravidade da situação de degradação dos vínculos sociais e humanos no espaço do trabalho. Se os empresários franceses, imbuídos da filosofia produtivista e das técnicas de gestão importadas dos Estados Unidos, tentaram colocar panos quentes e desviar o problema da ordem da questão social como se fosse quase nada ou uma incidência normal, a persistência e multiplicação de eventos dessa natureza forçaram a mobilização dos trabalhadores. Na France Telecom, eles têm realizado uma série de paralisações em protesto contra a morte de companheiros.

Após o acompanhamento de diversos processos desse tipo, o autor diz poder afirmar, com base nos dados levantados, a existência de uma relação entre a organização atual do trabalho e o suicídio. O fato de que os trabalhadores tenham começado a se suicidar no próprio local de trabalho é assaz revelador do problema, visto que o suicídio, em geral, porta sempre uma mensagem, ou seja, costuma ser dirigido, endereçado a algo ou alguém, a título de uma significação última, elucidadora do « gesto-limite » cometido. Dejours cita um caso clássico ocorrido na Vokswagen, o qual inclusive foi objeto posteriormente de um documentário (Les Chaînes du silence, 1999).

De um modo ou de outro, pode-se afirmar que o trabalho tem uma importância chave na construção da saúde dos indivíduos e na constituição de suas relações na esfera privada. Não há uma dicotomia ou dissociação entre essas esferas, mesmo que a tendência dos gestores seja a de atribuí-los a problemas de natureza psíquica individual e não coletiva.

A novidade que se apresenta no contexto atual é a incidência de suicídio entre gerentes e outros postos de confiança [cadres], assim como entre funcionários com vários anos de empresa. No caso deles, o determinante não seriam pretensas disfunções ou inadequações quanto à performance do seu trabalho; pelo contrário, tratam-se de profissionais com uma alta capacidade de gerir o stress, mais uma elevada competência e produtividade, no entanto, em algum momento, por razões administrativas, esse mesmo trabalhador passa a ser alvo de algum tipo de desqualificação individual da sua contribuição e do seu mérito no universo da empresa. De um dia para o outro, o trabalhador « acima da média » cai em desgraça, tornando-se objeto de crítica e isso desconstrói o edifício sobre o qual se equilibrava a sua auto-estima ou se escondia a fragilidade inerente a todo ser humano.

Se é sabido, como atestam pesquisas epidemiológicas, que a privação do trabalho, o desemprego de longa duração e a demissão favorecem a manisfestação de descompensações psíquicas (alcoolismo, drogadição, depressão, violência e suicídio, entre outros), a singularidade desses eventos em série no mundo do trabalho francês assinala justamente o sofrimento em presença do trabalho e não ante a sua supressão. Na verdade, há uma manipulação em curso, por meio das novas técnicas gerenciais e de aumento da produtividade, que, ao quebrar os vínculos de solidariedade entre os sujeitos, semear a desconfiança e a delação, mais a competição desenfreada, isolam o indivíduo, focando sobre ele as lentes da vigilância escrutinadora da performance ideal. O indivíduo é, portanto, permanentemente ameaçado ou pressionado, indiretamente, por um risco de demissão ou da falência da empresa, caso ele não atinja o padrão abstrato definido em termos de sua performance. Ele tenta ao máximo preencher essa « falta » ontológica, objeto da sua busca desenfreada, determinada pela cultura dos objetivos e da qualidade total. Soma-se a isso a tática - dentre outras do « arsenal de gestão produtiva » que seriam dignas de um Marquês de Sade das organizações do trabalho – de não enraizamento, ou seja, os funcionários, do estatuto de gerência [cadres], mudam desde diariamente de mesa e sala de trabalho quanto de local de trabalho, sendo transferidos abrupta e arbitrariamente, o que visa tanto a uma despersonalização dos sujeitos quanto à quebra da força coletiva e da coesão social que nasce do compartilhamento das mesmas experiências.

Da flexibilidade à terceirização, e posteriormente à gestão pelo stress, impede-se, no mundo volátil da produção, em empresas públicas ou privadas, o julgamento segundo os critérios da utilidade e da beleza, que outrora eram indicadores do bom cumprimento de uma tarefa ou trabalho. Na verdade, o trabalho propriamente dito fica em segundo plano. Sobrepõem-se a ele o lucro e as metas, impedindo por sua vez o reconhecimento social que advinham daqueles critérios. Se a identidade é a armadura da saúde mental dos sujeitos, não é muito difícil concluir o porquê da fragilização, desestabilização e « quebra » de tantas pessoas. O reconhecimento profissional e individual é, assim, confiscado nessa nova era do trabalho, sendo manipulado, pelas ditas técnicas organizacionais de controle do trabalho e da performance.

O Estado francês, por meio do Ministério do Trabalho, tenta agora fazer cumprir um Acordo Nacional Interprofissional, assinado em julho de 2008 à luz de diretivas europeias, mas as empresas resistem e os sindicatos desconfiam dos seus termos. Aquelas empresas, portanto, que até fevereiro de 2010 não tiverem posto em marcha dispositivos de redução do stress no trabalho integrarão uma « lista negra », a ser divulgada via internet. Na verdade, não faz muito tempo que os patrões faziam propaganda das vantagens da técnica de administração pelo stress, também conhecida como administração por objetivos. Segundo eles, este seria o meio ideal de fazer os trabalhadores superarem a si próprios, aumentarem o nível de concentração e agirem mais rapidamente. Seria ainda a única forma de conseguir realizar um projeto impossível, no prazo estipulado.

Vale ainda citar também o caso de uma instituição da administração pública francesa, ligada ao MInistério do Trabalho, curiosamente chamada Polo Emprego (uma fusão da ANPE e Assedic), onde desde setembro três funcionários - assoberbados com a crise econômica pelo excesso de demandas por parte de desempregados e expectativas por parte da hierarquia, quanto ao cumprimento de objetivos considerados inatingíveis - tentaram o suicídio. Fadiga profissional, esgotamento, conflitos internos à equipe, ambiente tenso, aumento de licenças médicas: eis um pequeno retrato da degradação das condições de trabalho na França.

Segundo Dejours, muitas vezes, as empresas tentam comparar ritmos de produtividade individual em processos de trabalho de natureza diferente. Isso vale para a pesquisa e para o trabalho social. Nem todos os problemas estudados e nem as complexidades sociais sobre as quais se atua têm a mesma natureza e grau de resposta. Há um nivelamento do que não pode ser nivelado, pelo simples fato de que são processos com ritmos diferenciados. Ele cita, como exemplo, a área de Saúde, em que profissionais lidam com pacientes com diferentes patologias, umas bem mais difíceis do que outras em termos de resposta e obtenção de melhora.

Para finalizar, cabe reiterar o que o autor destaca como um dos pontos mais nefastos da atual « desordem » ou, como diria o poeta Caetano Veloso, de que « alguma coisa está fora da ordem» no mundo do trabalho: o impacto sobre o trabalho coletivo, a cooperação e a convivência. A solidariedade é, assim, atingida em seu âmago, esfumaçando-se. A tendência, então, é a do isolamento e da solidão, fruto, a partir de um certo momento, não mais apenas das injustiças, pressões, fatalidades e perseguições pelos patrões ou chefes, mas da multiplicação insidiosa que se opera por meio do silêncio, abandono e indiferença dos colegas. Impede-se, com isso, a mobilização da solidariedade de uma maneira bem concreta, por meio do que Dejours qualifica como a « comunidade de interpretação das críticas e acusações da hierarquia sobre a vítima em questão ». Assaltado pelas dúvidas sobre si, perseguido pela direção e abandonado pelos colegas, eis alguns dos ingredientes que contribuem para o desencadeamento da espiral da depressão, que pode culminar com o gesto radical do suicídio.

É preciso, portanto, não se conformar, mas conjurar o suicídio no trabalho, pela ativação da cooperação e dos espaços de convivialidade. O direito à palavra e à expressão do que atormenta e inquieta os trabalhadores é um passo importante a ser garantido pelos profissionais que atuam junto às empresas. Pensemos nos assistentes sociais, além dos médicos do trabalho e psicólogos. Como diz Dejours, « falar a alguém que escuta é e será sempre um meio potente de canalizar o pensamento ».

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Para ler


Du Roy, Ivan. Orange Stressé - Le Management par le Stress à France Télécom. Paris, La Découverte, 2009.

[France Télécom tornou-se uma gigante mundial das telecomunicações. A antiga empresa pública é apresentada como o modelo de uma privatização bem sucedida, num setor que conheceu uma extraordinária mutação tecnológica. Mas há um grave reverso nessa medalha, muito menos mediatizado que os lucros recordes da firma: entre os seus 100.000 assalariados no Hexágono (expressão corrente sobre a forma hexagonal do mapa da França), dois sobre três se declaram estressados. Um mal-estar generalizado que tem por sintomas a banalização do recurso aos ansiolíticos, a progressão das licenças médicas de longa duração, o aumento das demissões e a perturbadora multiplicação de suicídios. É esta realidade desconhecida que revela este livro, fruto de uma pesquisa junto aos empregados, sindicalistas, médicos ou especialistas em saúde do trabalhador. Um livro que se apóia igualmente sobre os trabalhos do Observatório do stress e das mobilidades forçadas na France Télécom, criado pela iniciativa das organizações sindicais. Ivan du Roy mostra como a administração pelo stress (« management par le stress") foi erigida em sistema pelos dirigentes da empresa, com o objetivo notadamente de impulsionar milhares de empregados rumo à porta de saída. Essa técnica de gestão "dissimulada " e " perversa", segundo as palavras dos assalariados, se expandiu progressivamente com a privatização, enquanto os lucros multiplicavam-se. Nesse sentido, o caso de France Télécom é tristemente exemplar: ela é um laboratório para a gestão do pessoal pelo sofrimento no trabalho, uma experimentação do que se pode se produzir amanhã em outras grandes empresas e serviços públicos, dos Correios (La Poste) à Escola Pública francesa (l’Education nationale).]


Conferir em :
http://www.chapitre.com/CHAPITRE/fr/BOOK/du-roy-ivan/orange-stresse-le-management-par-le-stress-a-france-telecom,23988541.aspx

OMS. Prevenção do Suicídio: um manual para profissionais da mídia. Genebra, versão em pdf, 2000.

OMS. Prevenção do Suicídio: um manual para medicos clínicos gerais. Genebra, versão em pdf, 2000.

Outros links importantes

http://www.observatoiredustressft.org/
http://www.observatoiredustressft.org/images/stories/ASS_et_souffrance_au_travail_GD_211009.pdf
[Com a palavra os assistentes sociais!] [a ser traduzido brevemente por nossa editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta]


Filmografia Social

http://www.cine-travail.org/
http://www.film-documentaire.fr/Mise_a_mort_du_travail.html,film,25568
http://www.gralon.net/cinema/film-rien-de-personnel-5468.htm
http://teauma.neuf.fr/diffusions_du_documentaire.html
http://www.ridm.qc.ca/archives/film.f/l/lachainedusilence.html
http://www.film-documentaire.fr/Mise_a_mort_du_travail.html,film,25568


Mione Sales é assistente social, professora de Serviço Social (Uerj), doutora em Sociologia e graduada em Literatura Comparada. mionesales@gmail.com.

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