quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

Liberdade de imprensa: do que estamos falando?

                                        
                   “Sofri  um boicote cultural nos EUA com um projeto (...), o documentário
                          Comandante, no qual filmei Fidel Castro. Ele não foi lançado nos cinemas
                          americanos, e os canais de TV daqui se recusam a exibi-lo. E ainda dizem
                          que este país não tem censura.”
                                                                                   Oliver Stone, cineasta americano


Jefferson Ruiz
                                 
A imprensa nacional tem por hábito publicar, de tempos em tempos, críticas contundentes e pretensamente avassaladoras contra governos latinoamericanos. Não por acaso, seus alvos são aqueles que, de uma forma ou de outra, apresentam publicamente questionamentos às políticas desenvolvidas pelos países capitalistas, especialmente os Estados Unidos. Bolívia, Equador e Venezuela têm sido alvos prioritários, por utilizarem uma palavra que faz arrepiar o “mercado” e incomoda os mais comedidos defensores do capital: socialismo. Registre-se que sequer na esquerda que mantém como objetivo uma revolução social em busca de uma sociedade justa há acordo sobre o quão socialistas sejam ou não estes países.

Nas últimas semanas o alvo voltou a ser a Venezuela e seu presidente, Hugo Chávez. Inúmeras matérias divulgavam a existência de uma “crise social” no país latino. A grande maioria das reportagens, no entanto, se queixava especialmente do fechamento da rede de televisão local. Como de costume, mantiveram o leitor sem informações das razões de tal fechamento. Não disseram, por exemplo, que outras televisões sofreram a mesma ameaça, mas cumpriram as legislações nacionais para as concessões de instrumentos de comunicação, ou assinaram compromissos de fazê-lo em determinados prazos, e retomaram autorização para funcionamento.

O cineasta Oliver Stone (dos premiados filmes “Platoon”, “Nascido a 4 de Julho”, “O expresso da meia-noite”, “Nixon”, “JFK”, dentre outros) vem relatando as dificuldades que encontra nos EUA para produzir qualquer discurso que ouse apresentar versões alternativas de fatos que a mídia local (infelizmente quase sempre seguida pela imprensa brasileira) quer nos fazer acreditar serem inquestionáveis. Prestes a lançar “Wall Street: money never sleeps”, inspirado na crise internacional gerada pela especulação financeira no mercado imobiliário americano, Stone comentou em entrevista para o jornal O Globo a respeito de outro filme recente por ele dirigido: “South of the border”, lançado em 2009 no Festival de Veneza. Vamos a suas palavras:

“Tenho muito carinho por esse documentário. Ele foi feito no espírito de flagrar a cobertura hipócrita que a mídia americana deu a Chávez, chamando-o de ditador. A América Latina hoje tem um time de governantes, Lula entre eles, que se preocupam em ouvir quem passa fome. Como cineasta, eu não posso competir com a notícia. Só posso acrescentar memória à história.”

O cineasta anuncia, ainda, a preparação, há anos, de uma série documental que abrange os anos 1900 a 2010, cuja ideia é “(...) abordar a importância que os EUA exerceram na ascensão de Hitler, uma vez que toda e qualquer força política que pudesse fazer frente ao avanço comunista era bem-vinda. Se ele virou um Frankstein, o monstro, quero compreender quem foi o Dr. Frankestein por trás dele”, afirma.

Pensar a liberdade de imprensa não se restringe a defender o acesso a informações sem censura prévia. Este é um princípio cuja importância, em minha opinião, não devemos nem podemos jamais desconsiderar. Sugiro aos mais jovens que vejam o filme “Morango e chocolate”, uma produção cubano-mexicana-espanhola de 1994, para que tenham uma ideia mais precisa do que estou dizendo. Acesso à informação e liberdade de expressão são fundamentais para o desenvolvimento da cultura, da educação, das condições de exercício da política, do voto, do controle social sobre políticas públicas. Restringir, no entanto, a liberdade de imprensa a este aspecto é assumir a perspectiva liberal defendida pelos capitalistas hegemônicos na atualidade.

Em artigos anteriores, neste mesmo blog, já pudemos tratar o quão grave é, em um país como o Brasil, a concentração da quase totalidade dos meios de comunicação nas mãos de cerca de uma dezena de famílias. A forma liberal de que todos tenham acesso à comunicação (prever em lei que qualquer um pode, supostamente, disputar uma concessão pública junto ao Congresso Nacional) não se confirma na realidade: movimentos sociais, rádios comunitárias, universidades públicas e inúmeros outros sujeitos e organizações não conseguem viabilizar esta possibilidade. Vejamos alguns exemplos.

Que liberdade temos nós, do “mídia e questão social”, e vocês, que nos brindam com suas visitas, leituras, e-mails e comentários, caso desejemos nos comunicar com duzentos e cinquenta mil leitores em um único dia? Este número não é aleatório: ainda que os jornais impressos no Brasil venham sofrendo uma queda em sua circulação e tiragem ao longo dos anos (fruto, inclusive, do avanço da Internet como forma alternativa de comunicação), os principais jornais do país ainda mantêm uma circulação média diária em torno dos 250.000 exemplares. Nosso blog, com todos os cuidados, esforços e contribuições que vimos recebendo, conseguiu, ao longo de alguns meses, superar as quatro mil visitas. Qualquer disputa da Rede Globo de Televisão por quem entra ou sai de seus programas recebe este número de visitantes em pouquíssimos minutos. Há, mesmo, liberdade de imprensa no Brasil?

Pensemos em populações que não acessam políticas públicas e que precisam romper com estigmas e preconceitos que lhes são constantemente impostos pela grande imprensa. Um exemplo é a população que vive nas ruas das grandes cidades (não nos enganemos, não se trata de um fenômeno brasileiro: países como EUA e França têm convivido com número crescente de sem-teto). No Brasil, há uma valente experiência de organizações que visam divulgar como vivem as populações de rua, suas experiências, visões de mundo, reivindicações e horizontes. É o caso, por exemplo, da revista OCAS, vendida por moradores das ruas de diversas capitais em cinemas, teatros e outros pontos de grande movimentação. A revista já sofreu seguidas ameaças de não mais se sustentar. Ela pode ser adquirida atualmente a R$ 3,00; de cada exemplar adquirido R$ 2,00 são destinados para os vendedores. Há um código de conduta cumprido por eles. Dentre as previsões estão as de não se apresentarem embriagados e os de tratarem a população abordada com gentileza e educação.

Isto nos leva à política de financiamento público desenvolvida pelos governos, que nem sempre é evidente aos olhos da população. A análise do investimento em publicidade pública nos diversos instrumentos de comunicação demonstra enorme concentração de verbas públicas nos grandes órgãos de imprensa. O argumento utilizado é sempre a maior circulação de exemplares. Resultado: o poder público, particularmente o governo federal, sustenta com verbas pagas pelos nossos impostos o discurso praticamente único existente nos jornais, rádios, emissoras de televisão do país. Insistimos: há liberdade de imprensa no país?

Inglaterra, Alemanha e França têm entre suas emissoras de televisão ao menos 40% de emissoras públicas. Vários países cancelam concessões a empresas de comunicação que não cumprem regras aprovadas por seus parlamentos, muitas delas propostas inicialmente por seus governos (pouco se fala a respeito, mas também na Venezuela as regras para a comunicação cumpriram o mesmo caminho para sua aprovação). No Brasil, ao primeiro sinal de tentativa de estabelecer alguns parâmetros para aquilo que a mídia produz e divulga, como a valorização de produções regionais, a obrigatoriedade de transmitir campanhas de prevenção de doenças que assolam o país em pleno século 21 e iniciativas similares, isto é imediatamente interpretado como controle, censura, autoritarismo, tentativa de romper e negar a “liberdade de imprensa” nacional. Mas será que ela existe? Quantos canais de rádio e televisão tiveram sua concessão devidamente analisadas pelo parlamento, com um mínimo de participação e contribuição popular?

Até mesmo o governo Lula, elogiado por Stone, optou por um modelo de TV digital, há alguns anos, que impediu que se quadruplicassem canais abertos de televisão. A interatividade proposta pelos movimentos sociais (que permitiria avanços como o de transformar cada televisão em um terminal de computador, em um país onde a exclusão digital ainda é forte realidade) tende a ser substituída pela mera possibilidade de comprar produtos utilizados nas novelas e outros programas de televisão pela Internet. De que liberdade, então, estamos falando?

A liberdade de imprensa, como talvez a totalidade dos direitos previstos como resultado de lutas e confrontos de interesses na história da humanidade, permite distintas leituras e materializações históricas. A postura adequada, penso, no que se refere a tais direitos, é a de não nos contentarmos com as versões oficiais nem com aquelas ditadas pelos interesses de mercado , e isto vale para quando falamos do direito à comunicação. É necessário ir além das aparências nas análises que fazemos dos fatos, procurando identificar e refletir a respeito dos veículos de notícias que lhes dão visibilidade. Por quê? Quando? Como? Onde? Perguntas clássicas do jornalismo que ajudam também o leitor a avaliar o peso dado a esta ou aquela notícia, e não a tantas outras relevantes que permanecem na sombra do desconhecimento público. Essas são algumas pistas que propomos, caso queiramos todos efetivamente entender o tempo em que vivemos e construir as condições para que dias melhores, possíveis, desejados e necessários, se instalem.


Sobre as citações

A reportagem sobre os filmes de Oliver Stone foi publicada no Segundo Caderno do jornal O Globo, à página 6, no último domingo (07/02). Na mesma edição é interessante observar como a tentativa de se mostrar “isento” acerca da Venezuela é quase cômica. O jornal entrevista, na mesma edição e sobre os mesmos temas, número igual de pessoas favoráveis e contrárias a Chávez, mas o texto não consegue esconder sua opção (pg. 32, editoria “Mundo”).

Quanto aos filmes de Stone, “South of the border” terá por título no Brasil “Ao sul da fronteira”. “Wall Street: Money never sleeps” ainda não teve seu título escolhido para exibição no país.

“Morango e chocolate” foi dirigido por Tomáz Gutierrez Alea e lançado em 1994. Sensível e muito bem roteirizado, o filme questiona a ausência de liberdades em Cuba, no contexto do final dos anos 70, sem deixar, a meu ver, de reconhecer imensos avanços e conquistas da Revolução.

A revista OCAS é vendida em grandes capitais. No Rio de Janeiro é possível encontrar vendedores em cinemas de Botafogo, no Odeon (Cinelândia) e em alguns teatros. Para conhecer melhor a experiência vale uma visita a http://www.blogdaocas.blogspot.com/, blog da Revista e da entidade que a produz e mantém.

Dados sobre investimento público nacional em veículos de comunicação, regulação da concessão de rádios e televisões e outros aspectos que envolvem a democratização da comunicação no Brasil podem ser encontrados na ótima (e sempre citada por mim) página eletrônica do Intervozes (http://www.intervozes.org.br/) ou na do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (http://www.fndc.org.br/).


Três dicas

Sobre a Venezuela vale a pena conhecer versões alternativas. Uma delas pode ser encontrada em http://www.operamundi.com.br/. Sugiro a leitura de “Chávez é um inimigo da liberdade de imprensa?”, no link Opinião, artigo de 02/02/2010 (autoria do jornalista Breno Altman).

Outra sugestão interessante é assistir (ou rever) “A revolução não será televisionada”, dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain. Após a sessão, vale se perguntar novamente sobre quem aplica e promove golpes naquele país latinoamericano.

Aos que ainda não se deliciaram com o vídeo “Levante sua voz”, do Intervozes, repito que não sabem o que estão perdendo... Leve, engraçado e cheio de dados sobre a comunicação, ele ajuda muito a compreender o debate aqui proposto. Ele pode ser acessado aqui em nosso blog ou no link http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=5756



Jefferson Lee de Souza Ruiz atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro - CRESS-7ª R. É bacharel e mestrando em Serviço Social, ambos pela UFRJ. Contato: leenorio@yahoo.com.br



[Colaboração: Mione Sales, também articulista do blog M&QS]                                          

3 comentários:

  1. Muito bom o texto, muito esclarecedor. Gostei de saber dessa postura do cineasta Oliver Stone, fiquei curioso para ver suas obras citadas. A imprensa nacional – os grandes conglomerados – agem como as igrejas evangélicas doutrinando seus leitores/telespectadores.
    As comunicações no Brasil não formam um setor, mas um conluio.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  2. Jeffersonnn

    Eita Saudade dessa cabeça pensante,esse coração sonhador e esse todo realizador!!!

    beijo beijo beijo!!!

    ResponderExcluir
  3. Olá, Denise!
    A saudade é recíproca, querida!
    Mande um e-mail para retomarmos o contato - leenorio@yahoo.com.br
    Beijo grande,
    Jefferson

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário e/ou impressão...