segunda-feira, 8 de março de 2010

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

A mídia e as datas comemorativas: reflexões potencialmente antipáticas...


Recebi, nas últimas duas semanas, dois e-mails diferentes. Em ambos, a mesma sugestão: pensar em um presente para uma data especial que vinha chegando. Tomei um susto quando vi que a data em referência era o dia 08 de março. Isso mesmo: as sugestões eram de presentear alguém pelo Dia Internacional da Mulher... Meio saudosista, me lembrei de alguns anos atrás. Não faz muito tempo, as que comemoravam a data eram tidas como feministas, radicais, queimadoras de sutiãs e outros adjetivos pretensamente pejorativos. Pouco tempo depois, com a popularização da data por tantos lutadores, o mercado já começa a disputá-la como um novo aquecimento do comércio, anteriormente às “festas da páscoa”.

Mesmo na TV aberta é possível encontrar recentemente propagandas com a mesma temática. Em princípio, sua edição presta “homenagens” à mulher, pelo seu carinho, seu afeto, sua versatilidade de mãe, mulher, trabalhadora, esposa e tantos outros papeis (exceto o da luta, óbvio). Mal disfarçados, logo depois quem assume as homenagens são redes de perfumes, cosméticos ou algum produto voltado para o público feminino.


Che Guevara, o revolucionário argentino de papel decisivo, com Fidel Castro, na revolução cubana de 1959, também foi objeto de recente popularização. Redes internacionais de lojas, como a holandesa C&A, passaram a produzir camisetas com a famosa foto de autoria de Alberto Korda. É bastante comum encontrarmos, atualmente, nas ruas, camisetas com diversos motivos e referências a Che. A pergunta que caberia é se as pessoas sabem as razões pelas quais estas datas e figuras são comemoradas ou imortalizadas.

Saindo da esfera das lutas sociais, o jornal O Globo publicou, há algumas décadas, matéria em que reivindica a criação do Dia dos Pais no Brasil. Explica, sem qualquer pudor, que a data foi criada em função de um acordo com associações comerciais do Rio de Janeiro. É fácil perceber, ao menos no Brasil, que de tempos em tempos há uma data quase obrigando toda a população a se preocupar em presentear alguém. Vejamos: páscoa; dia das mães; dia dos namorados; dia dos pais; dia das crianças; natal. Certamente devo estar esquecendo alguma.

Reconheço, leigamente, que a economia de um país tem que estar sempre aquecida. De uma forma ou de outra, o comércio é uma das formas de garantir produção, circulação de mercadorias e outros processos que geram empregos. Também sei das dificuldades e constrangimentos quotidianos de, por exemplo, se negar a comprar um ovo de chocolate na páscoa, ou um presente no dia das crianças ou no natal, quando a grande maioria da população o faz naturalmente. Tais datas e comportamentos já fazem parte do quotidiano da vida nacional, com ao menos um aspecto bastante interessante para os debates que envolvem mídia e ideologia: eles não envolvem e/ou mobilizam apenas pessoas “sem consciência” ou “de senso comum”, ou ainda “de baixa escolaridade ou cultura”, como muitos de nós costumamos classificar comportamentos da população em períodos eleitorais ou de outras mobilizações políticas. Nestas datas demonstra-se o quão fabulosamente forte são processos de aculturação e ideológicos. Quase a totalidade de nós vai às compras, prepara ocasiões e “ceias” especiais, dentre outros comportamentos generalizados.

Penso que estes processos não estão desassociados de outros, que fazem com que mesmo vários de nós, ainda que nos reivindiquemos pessoas críticas, com “visões avançadas” sobre o mundo e a humanidade, vira e mexe expressemos preconceitos de raça, sexo, orientação sexual, classe social, local de moradia e tantos outros que percebemos no quotidiano da população em geral. Estes “subvalores” também atingem aqueles que lutam (ou afirmam fazê-lo) por um mundo justo.

Sei que vai isto soar piegas... Mas um modelo de sociedade que valorize as lutas das mulheres, a importância das crianças como próximas gerações da humanidade, a dedicação de pais e mães ao longo de nossas vidas e tantos outros processos que transformamos em um presente físico, precisa criar formas de valorizar estas contribuições à vida quotidianamente. O que não implica que deixemos de, quando possível, nos momentos em que tenhamos vontade, nas expressões de gratidão, amor, carinho, afeto, alegria por alguma data significativa, também fazê-lo através de uma mercadoria qualquer. O que me parece importante é que não nos rendamos a uma postura acrítica e que ajuda a consolidar a lógica mercantil em que mais vale um presente ou uma mercadoria do que a essência e o significado que podemos e devemos celebrar. Ainda que o façamos, pois – como afirma Marx – não estamos imunes à ideologia dominante na época em que vivemos, que mantenhamos nossa criticidade e estranhamento. Naturalizar processos e comportamentos é um passo decisivo para que os mesmos jamais sejam questionados.

De uma coisa estou convencido: temos que nos esforçar ao máximo para impedir que as lutas sociais e aqueles que nos servem de símbolo de busca de um mundo justo se tornem mero comércio. Ainda que possa ser um gesto pequeno, pode nos ajudar a imaginar possibilidades alternativas para uma sociedade baseada em outros valores, mesmo no que diz respeito à vida quotidiana.


Jefferson Lee de Souza Ruiz atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro - CRESS-7ªR, é bacharel e mestrando em Serviço Social pela UFRJ.
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Dicas e curiosidades

• É possível conhecer uma interessante experiência de mobilização pelo Dia Internacional da Mulher pelo link: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/no-dia-de-luta-das-mulheres-rosa-so-se-for-a-luxemburgo/view . O Brasil de Fato é uma mídia alternativa que vem buscando manter a possibilidade de versões distintas da grande mídia sobre diversos fatos.

• Uma referência à criação da comemoração do dia dos pais pelas mãos das Organizações Globo pode ser acessada em http://pessoas.hsw.uol.com.br/dia-dos-pais.htm. Como ela surgiu na década de 50 não consegui retomar a referência original do jornal O Globo. Há alguns anos ela estava disponível na rede eletrônica pelo endereço http://www.globoonliners.com.br/icox.php?mdl=pagina&op=listar&usuario=2554&post=4313, mas o endereço não abre a transcrição original da matéria. Seu título era exatamente “O dia dos pais nasceu aqui!”.

• Há diferentes versões para o surgimento do Dia Internacional da Mulher. É fácil encontrar, mesmo na Internet, a que informa que seu surgimento se deu em homenagem a 129 mulheres queimadas em uma fábrica de tecidos em Nova Iorque, em 1857. Uma versão alternativa, que nega a existência histórica desta greve e liga a data à organização política das mulheres socialistas pode ser encontrada na cartilha “O Dia Internacional da Mulher nasceu das mulheres socialistas”, de Vito Gianotti, do Núcleo Piratininga de Comunicação (http://www.piratininga.org.br/).

• O SindJustiça, no Rio de Janeiro, estreia na terça-feira, dia 09 de março, peça teatral em comemoração aos 100 anos do Dia Internacional da Mulher. A divulgação recupera datas históricas e informa que a peça dialoga com poemas de Brecht e trechos de músicas populares brasileiras. A peça fica em cartaz até abril, às terças-feiras, sempre às 19h30. O ingresso custa R$ 10,00. O auditório do SindJustiça fica na Travessa do Paço, 23, Centro, Rio de Janeiro. Pode-se fazer reserva pelo telefone 3528-1225, com Patrícia (setor cultural).

• Marx afirma em A Ideologia Alemã que as ideias dominantes em uma sociedade são as ideias da classe dominante. O livro pode ser encontrado no site da Editora Expressão Popular (http://www.expressaopopular.com.br/loja/produtos_descricao.asp?lang=pt_BR&codigo_produto=398).

• Dentre minhas leituras atuais está o livro Marxismo e Alienação, de Leandro Konder (Editora Expressão Popular, 2009, 2ª edição). Nos diversos capítulos do livro, o autor apresenta contribuições à análise da relação entre alienação e história, religião, ciência, capitalismo, arte, política, subdesenvolvimento. Recomendo, alertando que Konder não me parece ver o fenômeno da alienação como algo exclusivo dos capitalistas e de suas sociedades.

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