quarta-feira, 28 de abril de 2010

Editoria Jornalismo na Correnteza

Sobre favelas, jornalismo e revolução


Ana Lucia Vaz*


O primeiro impacto

Na primeira matéria que fiz no Borel, após as chuvas do início de Abril, cheguei na favela através de um contato da rede Nacional de Jornalistas Populares, que me apresentou a uma diretora da Associação de Moradores. Pedi para entrevistar algumas famílias. Ela me levou à biblioteca do Ciep, me apresentou, tirou todo mundo de uma única mesinha com três cadeiras que havia no local, me sentou numa e colocou uma cadeira no lado oposto, onde, rapidamente, se formou uma espécie de fila para me dar entrevistas. Me senti um tipo de funcionário do governo cadastrando eles. Assim que pude, saí da cadeira, mudei os lugares e rapidamente formou-se uma rodinha descontraída, gente sentada nas cadeiras ou na mesa, crianças passando pelas minhas costas. E fui entrando naquele mundo desconhecido.

Depois me levaram para ver as casas e, de novo, quem a gente encontrava pelo caminho ia se chegando, querendo participar da cobertura, contando suas histórias, aproveitando para fotografar também com seus celulares.


Pelas bordas


Quarta-feira passada, dia 21 de abril, estive no Morro dos Prazeres para acompanhar a reunião sobre remoções, chamada pela Associação de Moradores de Santa Teresa[1]. Cerca de 400 pessoas, entre moradores das favelas próximas, representantes de outras favelas, até de Niterói, representantes de entidades etc participaram. Participaram ou assistiram.

Circular pela arquibancada da Quadra dos Prazeres, de onde boa parte dos moradores daquela favela assistia à reunião, era ligeiramente desconcertante. A maioria ainda estava tentando entender o que se passava. Mas a conversa, como sempre, era muito fácil.

“Eu vim aqui porque disseram que vão remover todo mundo. Eu não quero sair daqui”, explicou dona Eleir, que não se cadastrou para pegar cesta básica, porque este cadastro dava “plenos poderes à Prefeitura para derrubar sua casa”, me explicou. Duvidei. Outra moradora, que não quis se identificar, fez o cadastro mas não sabia dizer o que estava escrito no papel. “Eles entregavam a folha pra gente e diziam: ‘assina aí e pronto’! Tinha que assinar para receber os donativos.” E a senhora ainda tem o papel? “Mais ou menos! Num é que eu lavei a bermuda com o papel dentro!?”, sorriu.


Todos disseram que a quantidade de doações que chegou aos Prazeres foi impressionante. “Tem gente dizendo que vai ficar um ano sem comprar roupa!”; “estão tentando comprar a gente!”, alfinetavam alguns moradores.

Apesar de não saberem explicar direito o que se passava, minhas “entrevistadas” contaram suas vidas, falaram da família, deram opiniões, fizeram fofocas. Tudo antes mesmo de me apresentar.

Valda, há 10 anos morando no Morro dos Prazeres, está disposta a sair de sua casa, que “está num lugar de risco”. Ela já recebeu o laudo de interdição, mas não foi pedir o aluguel. Tem medo de autorizar a demolição da casa. “E se não saem as casas que eles estão prometendo?” Pensa um pouco e completa: “É medo de ficar, medo de sair...” O filho mais velho não quer mais dormir em casa. Chegou a ter crise de pressão alta. O marido vive com outra e não liga para eles. Conversa longamente comigo, mas tem medo de ser fotografada. “Sei lá, eu moro numa comunidade...” Não fotografo.

Sentada ao lado de Valda, as falas combativas no microfone ganham outro sentido. Alguém convocou todos para “um grande ato em frente à Prefeitura”! Valda reage baixinho: “Ato pra quê?!” É, isso não resolve seu problema, concordo. “A coisa está assim: um puxa de cá, outro puxa de lá e nós... enquanto isso a rede fica fora d’água e os peixes vão morrendo tudo secos. Quero ver o que vai ser quando houver outra chuva!”

Ao final da reunião, tento checar as informações com Eliza Brandão, presidente da Sociedade de Amigos do Morro dos Prazeres. Ela está indignada. Mas ao final da plenária muitos disputam sua atenção. Ainda bem, não trabalho para um jornal diário que me obrigaria a ser mal educada. Pego os números de telefone e vou embora.


Escuta terapêutica

Dias depois, ligo para a associação. Eliza me explica que, no começo, a associação, com ajuda do serviço social da Prefeitura, estava distribuindo cestas apenas para quem havia perdido as casas. O laudo de interdição era o documento que comprovava que o morador estava desabrigado. A Prefeitura aproveitou, “montou uma tendinha na comunidade e começou a distribuir laudo de interdição. As pessoas se auto-interditavam!”

A fala de Eliza, agora com tempo, se reveza entre agradecimentos à solidariedade dos moradores, entidades, empresas e ONGs que apoiaram e estão apoiando eles e desabafos contra o poder público, a mídia e alguns moradores que se aproveitam da situação. Ela também perdeu sua casa e ainda não recebeu o aluguel social. Diz que ainda precisa chorar seus mortos. Mas foi atropelada pela ameaça de remoção, antes mesmo de ter tempo de digerir a dor.

Sobre as doações, Eliza explica que quem organizou a distribuição foi a associação, com ajuda dos assistentes sociais. Mas nada veio da Prefeitura. Nem equipamento adequado para os bombeiros que trabalhavam nas escavações. As máquinas demoraram dias, enxadas e botas foram doadas por comerciantes locais. “Eu pergunto: será que se fosse mais rápido, a gente não teria salvado alguma vida?” A cada avalanche de desabafo, Eliza se interrompe de vez em quando para pedir desculpas. São poucos os momentos em que falo, apenas para me solidarizar e permitir que continue. Ao final da conversa, brinca: “Obrigada, você hoje acabou sendo minha psicóloga, né?!”

E eu desligo, me perguntando como explicar a ela tudo que ganhei com nossa conversa.


Visibilidade terapêutica

Já no Borel, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde fiz meu primeiro contato, os moradores que querem deixar suas casas, ou as perderam, têm que protestar para conseguir o laudo que dá direito ao aluguel social. Uma semana antes da reunião no Morro dos Prazeres, os desabrigados do Borel fecharam o Ciep para obrigar a Prefeitura a produzir os laudos.

O ato teve ampla cobertura da mídia. Segundo alguns desabrigados, no mesmo dia a defesa civil chegou lá e, em dois dias, todos os laudos das casas de quem estava no Ciep foram produzidos.

Comprei os principais jornais, no dia seguinte ao ato e, na maior parte deles, me pareceu que as informações estavam distorcidas, amenizando o descaso do poder público. Quando voltei ao Borel, me surpreendi: eles estavam muito satisfeitos com a cobertura da mídia. Na verdade, não haviam lido os jornais. Levei alguns para mostrar mas, para meu espanto, não lhes importava muito. Estavam felizes porque foram ouvidos, filmados e fotografados. Porque receberam muitas doações e conseguiram que a Prefeitura os atendesse.


Esse tal bicho humano

A favela tem algo de escancarado e pegajoso. Como se essa gente de casas com paredes finas demais, pequenas demais pra manter a porta fechada se esquecessem de fechar também as portas da alma. Deixam tudo assim exposto, de qualquer jeito, pra gente ver e tropeçar e se atolar. Entrar numa favela, conversar com favelados, é como tocar com o dedo essas contradições tão humanas, que causam repulsa e desconforto e admiração. Um espelho desarrumado, sem o polimento iluminista que a classe média gosta de dar a seus perfis sociais. Um assombro! Que encanta e desconcerta.

Continuo seguindo os passos dos desabrigados do Borel, dos moradores do Morro dos Prazeres. Não tenho a ilusão de que minhas matérias vão mudar o curso da história que estão fazendo. Muito jornalista enlouquece nesta ilusão de mudar o mundo através da palavra. Cada dia tenho mais convicção de que a força do jornalismo está mesmo em ouvir. Tanto quanto a força da favela está em sua humanidade transbordante. O jornalismo, profissão iluminista de nascimento, só pode se tornar revolucionário pelo silêncio, pelo acolhimento da palavra do outro. Ninguém melhor que o favelado para ensinar isso aos jornalistas que estejam dispostos a aprender.



*Ana Lucia Vaz, jornalista, mestre em Jornalismo (USP), membro da Rede Nacional de Jornalistas Populares (http://www.renajorp.net) , professora de jornalismo e terapeuta craniossacral.
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[1] Veja matéria em: http://www.renajorp.net/

3 comentários:

  1. Linda a foto da favela!!!
    Poética...

    Abraços,
    Mione*

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  2. Olá, lindo texto, é uma realidade desafiante, sou acadêmica do 1• Semestre de Serviço Social, tenho o livro (execelente por sinal) Mídia, Questão Social e Serviço Social. Grande Abraço.. vou segui-los BJs

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  3. Ana, você como sempre fazendo revolução com as linhas diagonais. Segundo um grande músico, são as linhas mais velozes e intensas do que a direita e a esquerda. Adorei o seu atento ouvido que não explina, mas sempre ensina.
    Beijos
    Rejane

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