domingo, 23 de maio de 2010

Editoria Web-Tecno

Trópico – ideias de Norte e Sul


Uma de nossas seguidoras e interlocutoras, Jane Santos, enviou para nós do blog Mídia & Questão Social uma matéria « O controle da insegurança » da professora Paula Sibília (UFF), que vem a calhar com as nossas reflexões e preocupações acerca da cultura, educação e também, como bem mostram alguns artigos de Ana Lucia Vaz (EDITORIA JORNALISMO NA CORRENTEZA).

Além da matéria, tomamos contato com o site da revista on line Trópico – Ideias de Norte a Sul [www.uol.com.br/tropico], ligado ao UOL, que traz artigos variados e interessantes em particular sobre cultura, educação e arte, mas também sobre política, livros e debates e notícias sobre o audio-visual.

Estimulamos a visita ao site da revista e compartilhamos, desde já, com os nossos blog-leitores o texto que nos foi enviado.

Saudações coletivas,

Mione Sales & Nelma Espíndola*

Pelo Blog Mídia & Questão Social
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O controle da insegurança
Por Paula Sibilia


Implantação de câmeras de vigilância em colégios indica a obsolescência atual do sistema escola

Qual é o sentido do sistema escolar na sociedade contemporânea? Na tentativa de encontrar respostas para tamanha questão, ou para melhor formulá-la, proponho um breve passeio por certas novidades que estão afetando o âmbito educacional e que constituem sintomas de uma metamorfose bem contemporânea.

"O desinteresse é o principal motivo do abandono das aulas por parte dos jovens de 15 a 17 anos", concluiu um estudo sobre a evasão escolar realizado pela Fundação Getulio Vargas. "O resultado mostra que manter o jovem na escola não é apenas uma questão econômica", explicou o coordenador do trabalho. "É preciso criar e atender a demanda por educação", acrescentou, recorrendo ao léxico empresarial que impregna tudo nos dias de hoje: "É preciso garantir a atratividade da escola".

Depoimentos como esses são divulgados quase diariamente na imprensa, temperados com cifras impressionantes sobre o grau de analfabetismo e o "fracasso escolar" de crianças e jovens.

Além de tratar a educação como um produto pouco atraente destinado a um consumidor disperso, seduzido pela variada oferta do mercado do entretenimento, que concorre com sucesso para conquistar sua atenção, os dados sugerem que todo o instrumental escolar se encontra em decadência. Não só porque perdeu eficácia no cumprimento de suas metas mais elementares, mas também porque freqüentar a escola deixou de ter sentido para sua clientela.
O regime escolar foi inventado numa confluência de tempo e espaço bem concreta, com o objetivo de responder a certas demandas específicas de um determinado projeto histórico: o capitalismo industrial que sustentou a era moderna. Uma sociedade que se pensou a si mesma como igualitária, fraterna e democrática; e, por conseguinte, assumiu a responsabilidade de educar todos os seus cidadãos para que estivessem à altura de tão magno projeto.

Mesmo nos casos em que se consegue convencer os estudantes para que se sentem todos os dias nas carteiras e abram seus caderninhos, os dados indicam que as coisas já não funcionam como deveriam. "É natural uma criança passar anos na escola sem aprender a ler e escrever?", perguntava uma professora num artigo publicado em "O Globo" há pouco mais de um ano.

"Até a década de 1980, o analfabetismo brasileiro era explicado basicamente pela escassez de vagas nas redes públicas de ensino, o que diminuía as oportunidades educacionais da maioria da população brasileira em idade escolar", explicava a especialista. Mas agora é diferente: "Hoje, o que se comprova é que os analfabetos estão dentro da escola, que se mostra incapaz de cumprir uma de suas tarefas mais tradicionais e básicas, mesmo quando os alunos nela permanecem por até oito anos".

Então, eis o que todo o mundo já sabe: a escola está em crise. Tal desmoronamento não deixa de fazer sentido nos tempos que correm, aliás, pois essa respeitável instituição é uma tecnologia de época que, talvez, já tenha ficado obsoleta.

Após as enormes transformações que perturbaram o planeta a partir da segunda metade do século XX, porém, esse panorama mudou bastante, e agora são outros os corpos e subjetividades que nossa sociedade precisa e se encarrega de produzir. No entanto, as crianças e adolescentes que foram criados nesse novo meio ambiente são os mesmos que se submetem, diariamente, ao contato com os envelhecidos rigores escolares.

Enquanto os alunos vivem fusionados aos seus aparelhos digitais, por exemplo, essa instituição inventada há três ou quatro séculos continua operando com a aparelhagem analógica do giz e do quadro negro, dos regulamentos e dos boletins, dos horários fixos e das escrivaninhas enfileiradas, da prova escrita e da lição oral.

O que fazer, então? Em suas lúcidas análises acerca da crise das "sociedades disciplinares" da era industrial e a veloz implantação de outro modo de vida, Gilles Deleuze foi lapidário: essas instituições "estão condenadas, num prazo mais ou menos longo".

O filósofo constatava, já em 1990, que "os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias", aludindo tanto à escola como ao hospital, ao exército como à prisão. Não haveria, porém, conserto possível para essas vetustas invenções, pois seu ciclo vital foi concluído e agora elas perderam seu sentido histórico. "Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam", escreveu Deleuze.

Duas décadas depois desse diagnóstico, são muitos e cada vez mais inegáveis os indícios da ruína. Em consequência, por toda parte brotam estratégias que tendem a enfrentar tal declínio com propostas alternativas, que visam a reverter o desinteresse dos alunos pela atual oferta escolar e sua consequente "evasão" do sistema educativo, bem como a constatação de que este não consegue dar conta de seus objetivos mais rudimentares.

Entre as manobras mais chamativas figuram as recompensas em dinheiro pelos resultados positivos no aprendizado, com pagamentos para os professores e alunos que conseguem algum sucesso. São vários os projetos desse tipo deslanchados em diversos países nos últimos anos, e eles resultam especialmente eloquentes por introduzirem a lógica do mercado e seu "espírito empresarial" num terreno que se supunha refratário a esse tipo de comércio.


Tédio, vandalismo e represálias

Outra dificuldade que ultimamente vêm agoniando a fatigada instituição escolar é o brutal aumento de episódios violentos entre seus muros: agressões verbais e físicas dirigidas aos docentes e aos funcionários, brigas entre estudantes que podem chegar ao assassinato e até mesmo roubos de equipamento e depredações. Todos os dias ocorrem acontecimentos desse tipo, que de modo algum constituem um "privilégio" local ou regional, pois são emblemáticos os casos mais berrantes que, de vez em quando, maculam o noticiário internacional, relatando massacres com dezenas de vítimas, perpetrados em países como Estados Unidos, Alemanha ou Finlândia.

Os eventos habitualmente incluídos nessa categoria rivalizam em diversidade, embora costumem conter ingredientes que revelam certas características do modo de vida e da subjetividade contemporâneos. Recentemente, por exemplo, foi reportada uma "onda de estrangulamentos" na França, que provocou a morte de pelo menos 14 alunos de primeiro e segundo graus, motivados pela busca de "sensações extremas" mediante a asfixia.

No Brasil, um dos casos mais comentados dos últimos meses foi o da estudante universitária hostilizada por uma multidão de alunos, devido à "chamativa minissaia" que vestia. A imagem do tumulto captada pelas câmeras dos telefones celulares de seus colegas inundou a internet e outros meios de comunicação; como corolário, a jovem acabou sendo expulsa da faculdade particular onde estudava e, de imediato -bem no tom da época- tornou-se uma efêmera estrela midiática.

Por outro lado, assim foi descrito um episódio ocorrido em novembro de 2008 numa escola estadual da zona leste de São Paulo: "Pedras e carteiras foram arremessadas nos vidros, portas arrombadas, tapas e socos fizeram os professores, acuados, se trancarem dentro de uma sala". Em meio ao caos, enquanto vários adolescentes "choravam e gritavam, a diretora da escola "desmaiou".

Um professor relatou que não se tratou de um fato isolado, pois desde o início do ano os alunos vinham quebrando janelas e até tinham tentado botar fogo no prédio. "Só não conseguiram porque a Polícia Militar interveio, mas já ouvi eles falando que vão colocar a escola no chão", continuou o docente. "Acho que o problema nem é com os professores, eles se revoltam pela escola ser em período integral."

Outra professora explicou que "trancaram os professores por rebeldia, para mostrar força", acrescentando que "alguma punição a escola tem de dar", visto que os problemas vêm acontecendo há tempos, mas "os funcionários não registravam ocorrência por terem medo de represálias dos alunos".


Armadilha da visibilidade

Várias táticas se propõem a escorar as ameaçadas pilastras escolares para conter esse "flagelo de época" que as está corroendo. Uma delas é especialmente interessante por constituir um sintoma das transformações que estamos vivendo: trata-se dos projetos de instalação de câmeras de segurança nos estabelecimentos educacionais.

Em princípio, parece uma mera atualização tecnológica do panóptico, aquele dispositivo de vigilância com vocação reformadora idealizado em 1789 pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, que Foucault resgatou por constituir um modelo arquitetônico para as modernas instituições disciplinares.

"Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar", explicava o filósofo. Graças ao efeito de luminosidade, cada silhueta isolada em seu cubículo cercado por grades se oferecia ao olho vigilante, "perfeitamente individualizada e constantemente visível".

Apesar de eventual semelhança entre a velha masmorra e a prisão moderna baseada nesse inovador mecanismo que permitia "ver sem parar", na realidade se trata de duas tecnologias distintas: das três funções ostentadas pela instituição medieval -trancar, privar de luz e esconder- só se conserva a primeira. "A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia", adverte Foucault, para concluir assim a comparação: "A visibilidade é uma armadilha".

Por isso, o circuito integrado de câmeras de vigilância, essa tecnologia tão contemporânea, também parece simplificar de um modo mais eficaz aquela ingrata tarefa que, antes, devia ser efetuada de forma rudemente artesanal, recorrendo a uma complicada parafernália de sentinelas, torres e grades a contraluz.

No obstante, essa aparência de continuidade entre ambos os dispositivos pode ser tão enganosa como aquela perspectiva que pensava a prisão moderna como um mero aperfeiçoamento do calabouço medieval. Embora pareçam simples versões renovadas do panóptico, os sistemas eletrônicos também têm especificidades bem significativas, que carregam a marca da nossa época e que vale a pena serem examinadas.

Em vez de subsidiar a disciplina escolar por meio de uma vigilância centralizada -ou melhor: além de tentar cumprir essa meta cada vez mais quimérica-, os novos sistemas apontam de modo prioritário para algo bem mais contemporâneo: o controle da insegurança.


Vigiar o descontrole

Em Florianópolis, por exemplo, um sistema desse tipo foi implantado em 2009 "com o objetivo de trazer maior conforto e segurança aos alunos", pois, além de "proporcionar maior rapidez e agilidade na repressão de possíveis delitos contra os bens públicos municipais, será útil no sentido de tornar estes espaços mais seguros para os alunos".

Um ano antes, várias escolas públicas de Foz do Iguaçu já tinham instalado câmeras "para monitorar o comportamento dos estudantes", com a autorização de pais e alunos, que até ajudaram a pagar pelo sistema. O objetivo era evitar a destruição dos prédios e o roubo de artefatos eletrônicos. "A depredação ocorre por parte de poucos alunos", explicou o vice-diretor de um dos colégios. "Com as câmeras garantimos que os demais estudantes terão uma escola duradoura".

Fins semelhantes têm os projetos de lei anunciados ao longo do ano passado por Estados como os de Pernambuco (que se propõe a "coibir furtos, depredações, tráfico e agressões físicas de que são alvo os professores, funcionários e alunos que desejam realmente estudar"), Rondônia (cuja meta é "garantir segurança à comunidade estudantil" e "conter a violência nas escolas públicas e privadas") e Mato Grosso do Sul (com a intenção de "prevenir e apurar atos criminosos ou que atentem quanto à segurança da comunidade escolar e preservação do patrimônio da escola").

Precipitado por alguns episódios especialmente violentos ocorridos em escolas públicas nos últimos meses, São Paulo também anunciou um plano de "redução dos índices de criminalidade" em suas escolas. O sistema foi elaborado com assessoria da Polícia Militar e contempla a instalação de dezenas de milhares de câmeras nas 5,3 mil escolas do Estado, conectadas a um programa online de registros de ocorrências e administradas por uma empresa especializada em monitoramento.

De acordo com o presidente do Conselho de Segurança, trata-se de uma "necessidade de interesse público", referida tanto a funcionários e professores, como a familiares de estudantes "que acreditam na instituição escolar e, ainda, no seu trabalho educacional que, supõe-se, possa resultar na construção de um futuro promissor para crianças e adolescentes".

Em Brasília, os planos estão ainda mais adiantados. A lei que prevê a instalação de mais de mil câmeras em todas as 620 escolas públicas do Distrito Federal "para tentar diminuir os atos de violência e vandalismo", além de "garantir a segurança dos alunos e funcionários, assim como evitar pichações e depredações do patrimônio público", começou a ser colocada em prática em 2007, inicialmente com recursos arrecadados pelos próprios colégios, antes mesmo de ser efetivamente sancionada.

O orçamento do sistema ascende a R$ 70 milhões, mas o enorme investimento parece compensar, em virtude do seguinte cálculo: os cofres públicos brasilienses segregam anualmente quase uma quinta parte desse total para reparar as escolas destruídas ao longo do ano letivo.

Um estudante da sexta série do ensino fundamental, por exemplo, manifestou sua concordância com a iniciativa ao lembrar que sua escola está sempre pichada e as brigas entre os colegas são constantes. "Não me incomoda ter uma câmera me filmando o dia inteiro", afirmou o jovem de 12 anos de idade. "É melhor do que estudar numa escola destruída." O diretor de uma das instituições vigiadas completa: "Não deveríamos precisar fazer tudo isso, mas a situação está complicada, vivemos numa comunidade carente que não entende que a escola é de todo mundo".

A meta alegada de modo prioritário em todos esses projetos, por tanto, é a de conferir segurança e restringir os atos criminosos em prédios escolares, graças à instalação de câmeras por toda parte. "Os pais se sentirão mais seguros em deixar seus filhos nas escolas", afirmava uma matéria jornalística sobre o assunto, acrescentando outro motivo que costuma ser mencionado em segundo plano: "Também se acredita que as câmeras podem ser grandes aliadas no processo de educação".

A mesma reportagem citava ainda o seguinte depoimento da mãe de um estudante: "Tem que ter câmera na escola, acho mais seguro, é um jeito dos alunos se autolimitarem". De fato, a diretora de uma das escolas conta que os estudantes "deixaram de pichar os banheiros após a instalação das câmeras".

Já na sala de aula de uma classe da sexta série, que também passou a ser monitorada devido a seu alto índice de repetência, "no início a turma ficou quieta", relata um dos estudantes, "mas na semana seguinte, a bagunça voltou e tudo continuou do mesmo jeito". Uma das professoras consultadas, porém, destaca uma utilidade do sistema: "Sempre que algo errado acontece, eles afirmam que não fizeram, mas com a câmera está tudo registrado e não tem o que contestar". A diretora também se diz satisfeita, embora considere que a escola ainda precisa de pelo menos mais 5 câmeras, além das 11 já instaladas no estabelecimento. "Assim, controlamos nossos estudantes e evitamos roubos", disse.


Do reformismo moral à blindagem

Após esse breve percurso, parece evidente que, apesar das semelhanças entre todas essas experiências atuais e o sistema panóptico descrito por Foucault como um dos mecanismos básicos das instituições disciplinares, a justificativa que costuma gravitar sobre os sistemas de vigilância eletrônica não é mais moral: ela é claramente policial.

Não pretende inculcar o respeito às regras nem atiçar a culpa pela falta de cumprimento do dever, mas seu objetivo é tirar proveito do medo sem deixar nenhum interstício fora de controle. As câmeras não têm como meta prioritária tentar que aqueles alunos vigiados, cujo comportamento se considera incorreto, internalizem as normas diante da ameaça de punição, como seria o caso de um panóptico atualizado tecnologicamente.

As novas redes de circuitos integrados se propõem, com muito mais afinco, a evitar roubos e outros "atos de vandalismo" contra os bens materiais que constituem o patrimônio escolar, além de proteger docentes e alunos de eventuais ataques de todo tipo, provenientes tanto de fora como de dentro da mesma instituição.

Contudo, sabemos que essas afrontas podem ser executadas com armas de fogo ou com canivetes e pedras, com socos e chutes, mas também -e cada vez mais- com a ajuda de artefatos mais escorregadios na hora de transpor muros e esquivar de câmeras: internet, celulares, blogs, fotologs, redes sociais e vídeos on-line.

Cabe notar, ainda, que as primeiras iniciativas desse tipo no Brasil datam de meados de 2008, quando foi proposto um projeto de lei que tornaria obrigatória a instalação de câmeras em todas as escolas públicas e privadas do país. O objetivo também consistia na "melhoria da segurança nos estabelecimentos de ensino". Porém, um dos detalhes mais curiosos era que os pais dos estudantes poderiam ter acesso ao material filmado.

De acordo com a deputada que propôs a medida, isso resultaria "extremamente importante para que haja maior envolvimento dos pais na educação de seus filhos, permitindo que acompanhem as atividades escolares no momento em que elas estiverem ocorrendo". Além disso, a conservação das gravações durante 30 dias seria "eficaz para o controle de infrações" e para a prevenção tanto das pequenas transgressões internas como dos acometimentos externos "que sofrem as escolas e os alunos, especialmente nos estabelecimentos situados em regiões com altos índices de criminalidade".

Se na sociedade de controle se produz uma intensificação e uma sofisticação de certos dispositivos disciplinares, enquanto também se desdobram mecanismos completamente inéditos -que respondem a novas premissas e apontam para outros objetivos-, estas iniciativas de registro eletrônico nas escolas são exemplos perfeitos de tais processos.

Por isso, em vez de representar uma mera atualização do velho panóptico industrial, essas estratégias se harmonizam com outras expressões bem atuais, como os carros blindados, os condomínios fechados e as alarmes que defendem a propriedade privada a força de senhas numéricas e cartões com chip, longe daqueles antiquados métodos que tentavam injetar com sangue a moral da boa letra nos corpos confinados.

Porque as redes eletrônicas almejam controlar aquilo que Gilles Deleuze vaticinou como uma grave contenda para a nova configuração sociopolítica e econômica: a "explosão dos guetos e favelas", com a consequente ameaça de irradiação desse temido mal de época, conhecido como "insegurança". E, além disso, elas oferecem aos pais e outros adultos a ilusão de exercerem algum tipo de controle sobre os corpos hiperativos dos jovens e crianças.

Nas escolas japonesas, por exemplo, já estão sendo utilizados pequenos chips ou "etiquetas inteligentes" que são implantados nos corpos dos alunos e transmitem a seus progenitores uma mensagem automática via celular, assim que seus filhos entrarem no colégio. Caberia concluir, como declarou um policial envolvido num dos projetos de vigilância eletrônica nas escolas brasileiras, que, "apesar de ser uma invasão de privacidade, entendemos que, quando se quer ter um pouco mais de segurança, tem que diminuir a liberdade em busca do equilíbrio".


Inventar novas armas

Paradoxalmente ou não, apesar do veloz avanço das redes de vigilância eletrônica que infiltram os muros das escolas, fazendo circular imagens e informações em tempo real, os alunos costumam ser proibidos de ingressarem nos prédios com suas próprias câmeras e outros dispositivos característicos da "sociedade de controle". Ou, pelo menos, tenta-se evitar que isso ocorra.


Em maio de 2009, por exemplo, foi ampliada a lei que proibia o uso de telefones portáteis nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, incluindo outros aparelhos na lista original: tocadores de música, jogos, agendas eletrônicas e máquinas fotográficas. "Essa alteração na lei aumenta seu alcance e eficácia, já que sabemos que os celulares não são os únicos responsáveis hoje em dia por distrair os alunos e atrapalhar as aulas", explicou o deputado responsável pela emenda legal. "Agora ficará mais fácil garantir a atenção em sala de aula", acrescentou. Vale esclarecer que a proibição não se refere apenas aos alunos, mas também aos docentes, exceto em casos permitidos para fins pedagógicos.

Tudo isso é bem significativo para rematar esta reflexão sobre as transformações que estão afetando a área educacional e que chegam a colocar em questão, inclusive, seus próprios fundamentos. Pois, se o modelo analógico da sociedade disciplinar -aquele no qual se decalcavam todas as demais instituições- era a prisão, qual seria essa instância exemplar na atual sociedade informatizada?

Provavelmente essa instituição multifacetada não seja apenas o inefável "espírito empresarial", mas também, e mais precisamente, uma rede de conexão global, como a internet. Ou, então a teia de telefonia celular ou as redes sociais, como Twitter, Facebook e MySpace -todos recursos intensamente utilizados pelos colegiais em escala planetária.

Apesar de sua visionária imaginação, quando Deleuze expressou que "não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em um espaço aberto", o autor não teria podido prever o incrível desenvolvimento desses dispositivos na primeira década do século XXI. Menos ainda, a extensão atual desse desejo de reportar constantemente os mais triviais usos do tempo cotidiano. Algo que não se faz em obediência à pesada obrigação moral de cumprir regulamentos e evitar punições, mas por prazer. E que desperta o interesse dos demais, tecendo assim uma rede altamente efetiva de permanente controle mútuo.

Cabe deduzir que a vigilância, o confinamento e as pequenas sanções que regiam as instituições típicas dos séculos XIX e XX, como a escola, a fábrica e a prisão, já não são mais necessários para nos transformar em corpos dóceis e úteis, para fazer de todos nós subjetividades compatíveis com os ritmos do mundo atual.

Em oposição a esses enferrujados instrumentos da era industrial, são bem mais eficazes as novas formas de nos amarrar aos circuitos integrados do mundo contemporâneo: agora estamos todos "livremente" conectados não apenas às redes sociais, ao e-mail e ao telefone portátil, mas também a outros dispositivos de rastreamento, como o GPS, os cartões de crédito e os programas de fidelidade empresarial. E o fazemos com cotidiana devoção, o tempo todo, porque queremos e gostamos.

As crianças e os jovens, sobretudo, parecem adorar fazê-lo cada vez mais, a todo o momento e em qualquer lugar, inclusive para sobreviver ao tédio que implica ter que passar boa parte de seus dias trancados na escola.

Todas as mudanças aqui comentadas implicam, sem dúvida, em uma bem-vinda libertação dos velhos mecanismos de ortopedia social que massacravam os corpos das sociedades modernas para adaptá-los a seus compassos e alimentar as engrenagens do industrialismo.

No entanto, caberia perguntar o que podermos e queremos fazer com as liberdades conquistadas, qual é a capacidade da escola para resistir a tamanha mutação e se essa estrutura anacrônica está em condições de se adaptar -e como- às novas regras do jogo. Como um antídoto que evita tanto os moralismos nostálgicos e o mal-estar abúlico, Deleuze recomendava, também, que não cabe indagar "qual é o regime mais duro ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições".

Voltar atrás na história não é possível e, além disso, tampouco seria sensato jogar fora tantas conquistas na luta contra as asperezas do mundo disciplinar, que com altos custos e bastante sofrimento conseguimos desmantelar. "Muitos jovens pedem estranhamente para serem 'motivados', e solicitam novos estágios e formação permanente", apontava Deleuze; "cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas". Pensar essa questão é tão urgente quanto agir, por consequência. E desse desafio estão incumbidos precisamente eles: os jovens.

Publicado em 28/3/2010

[http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3176,1.shl]
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Paula Sibilia

É professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e da Pós-Gradução em Comunicação, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ, é autora de "O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais" e "O Show do Eu: A Intimidade como Espetáculo".

Imagem – « Le sommeil »/ « O Sono » - Salvador Dali.

Para ler

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, várias edições.

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