sexta-feira, 11 de junho de 2010

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

O SUS, a saúde-mercadoria e três filmes americanos
(estaríamos contribuindo para o desmonte da política pública de saúde no Brasil?)


Jefferson Ruiz*

Nas nossas vidas há momentos em que nos vimos obrigados a nadar contra a correnteza.

Em alguns deles, no entanto, sequer percebemos que nossos atos favorecem o sentido dos rios e das águas: estamos convencidos de que nossa atuação vai em sentido oposto... Em geral esta sensação equivocada ocorre em períodos em que é tamanha a hegemonia de determinada ideia que quase a naturalizamos: passamos a buscar e defender, ainda que em pequenos círculos, argumentos que a justifiquem. 

Os mais sensíveis talvez não devam passar deste parágrafo. As reflexões que se seguem são, ao menos para mim, muito incômodas, exigindo capacidade de autocrítica e gerando, por vezes, forte sentimento de impotência frente a um quadro que tende, na atual conjuntura, a ainda se complicar.

Sabendo me arriscar à crítica de quem ler esta contribuição (o que seria bem legal, posto que a intenção do blog não é só refletir sobre a relação entre mídia e as nossas vidas, mas provocar debates e alimentar reflexões do leitor e dos autores dos artigos), penso que ocorre, atualmente, com o Sistema Único de Saúde brasileiro algo semelhante àquela sensação acima. Aí vai a afirmação polêmica: muitos de nós, que dizemos defender o SUS, contribuímos para fragilizar as condições de sua defesa.

Argumentos há para isso, e muitos. Em diferentes níveis de legitimidade eles se colocam por pessoas de diferentes visões de sociedade. O resultado, infelizmente, parece ser o mesmo: a maior dificuldade de defesa do SUS como modelo de política pública universal, gratuita, com qualidade e socialmente monitorado.

A imprensa cumpre seu papel. Dificilmente passamos um mês sem reportagens que qualificam como descaso ou algo mais grave a situação em que se encontra o atendimento público medicinal à população. A última que li dizia respeito às imensas filas de hospitais públicos. Cada um de nós se lembrará facilmente de reportagem em televisão, de matéria na internet ou em jornal impresso, ou mesmo de relato de vizinhos ou parentes sobre o que seria “a falência do SUS” ou denominações semelhantes.

Nós, que somos “de esquerda” no complexo mundo das lutas sociais, não fazemos esta afirmação abertamente. Questionamos, com absoluta razão, a ausência de investimento público na rede de atenção à saúde; os baixos salários pagos aos profissionais; as condições de trabalho nefastas encontradas nos equipamentos públicos; a perspectiva de criação de Organizações Sociais e outros fatores gerados pela política que degradam, dia após dia, as condições de defesa do SUS. No entanto, assim que sobra uma graninha, uma das primeiras prioridades é encher os bolsos dos planos privados de saúde em nome de uma pretensa (nem sempre real) segurança para o caso de virmos, nós ou nossas famílias, a adoecer. Ideologicamente ganhos para esta necessidade, mantemos o discurso de defesa da saúde pública. Ela atenderia aos mais pobres, aos que não têm condições de pagar por seu próprio atendimento médico com maior qualidade. Em outras palavras, são “políticas pobres para os pobres”. Teria este nosso comportamento algo a ver com o esvaziamento das lutas populares em defesa do SUS?


O SUS e políticas bem sucedidas


Há políticas para a saúde no Brasil que não seriam as mesmas sem a existência do Sistema Único de Saúde. É sempre bom lembrar que ele foi fruto de lutas de décadas, feitas por movimentos sociais, profissionais da área da saúde, partidos políticos e outros sujeitos sociais. Vejamos algumas destas conquistas:

. combate à AIDS – nesta somos referência internacional; houve, inclusive, acertos do governo federal em quebrar patente de medicamentos fundamentais para os que convivem com a presença do vírus; no Brasil, embora isto não reduza a agressividade do vírus para a vida das pessoas, a AIDS já é quase vista como doença crônica, fruto de uma política de acesso gratuito a tratamentos e medicamentos que vem mantendo saudáveis e produtivas dezenas de milhares de pessoas;

. hospitais universitários – continuam sendo referência de pesquisa em saúde, mesmo com o sucateamento do ensino de nível superior e com o cada vez mais reduzido investimento financeiro; não é por menos que são muito procurados pela população; aliás, a implantação das organizações sociais já tenta, há muitos anos (com sucesso em alguns estados) criar uma dupla via de entrada para o atendimento nos HU´s: uma pelo SUS, prevista na legislação que universaliza as políticas de saúde, outra para portadores de planos privados de saúde;

. investimento em produção de medicamentos – também vítima de redução de investimentos, a produção pública ainda sustenta o combate a diversas doenças e o fornecimento, ainda que insuficiente, de remédios gratuitamente para parte da população;

. campanhas de prevenção a doenças e epidemias – é uma das principais ações que alteram o sentido que o senso comum dá à saúde como mera ausência de doenças; pelas campanhas conseguimos ter acesso a informações fundamentais para a defesa de nossa saúde, evitando a fragilização de nosso sistema imunológico e prolongando a potencialidade de vida sadia; uma campanha exemplar é a que combate a subnutrição no país, com a contribuição, inclusive, de movimentos populares e mesmo religiosos.

O modelo que se contrapõe ao SUS com maior alcance parece ser, mundialmente, o da saúde privada. Neste aspecto não há como negar: os Estados Unidos continuam a ser um de seus maiores defensores. É verdade que aquele país vem sendo obrigado a reconhecer a impossibilidade de manter sua política de saúde da mesma forma, em função do número cada vez maior de pessoas descobertas por um sistema em que só é atendido quem paga (e caro!) pelos serviços prestados.


Três filmes americanos


Chegamos ao cinema americano, outra imensa indústria utilizada para consolidar valores defendidos pelos capitalistas em nossas consciências. No entanto, em várias oportunidades há filmes americanos que denunciam situações que atingem diversas populações.  

Semana passada, em um intervalo que forcei no meu acúmulo de tarefas de estudante que trabalha, revi “Melhor é impossível”. Trata-se de um filme delicioso, com atuações memoráveis de Jack Nicholson (Melvin), Helen Hunt (Carol) e Greag Kinnear (Simon), além da presença de Jill (Verdell), um cachorrinho encantador.

Melvin é um cara chato, sistemático, rico e preconceituoso, que quer que o mundo gire a seu redor e não economiza palavras estúpidas e tratamentos antipáticos com os outros para obter sua própria satisfação. Uma delas é almoçar sempre no mesmo restaurante, e ser servido sempre por Carol, a garçonete, mãe solteira de uma criança com graves problemas respiratórios, mas que não tem acesso a serviços médicos em função de sua renda. Simon é o vizinho de Melvin. Homossexual (o que gera inevitáveis ofensas e agressões verbais de Melvin), Simon é um pintor que sobrevive apenas de seu trabalho e dono de um belo apartamento. Como decorrência de um imprevisto Simon precisa recorrer a serviços médicos. Após os vários procedimentos necessários, sua vida desmorona: o custo do atendimento prestado lhe tira não somente todos seus bens e posses, mas também a alegria e a inspiração que lhe possibilitavam produzir suas obras.

Odeio contar (ou saber antecipadamente) finais de filmes... O importante, aqui, é saber que este fato gera desdobramentos que entrelaçam as vidas de Melvin, Simon, Carol e do encantador Verdell. Para nossas reflexões, o que importa é o que desencadeou o processo: a vida de Simon não é mais a mesma, em função dos investimentos que teve que fazer para se manter vivo e com saúde. A mercadoria que adquiriu custava caro demais. Para quem for ver ou rever o filme, sugiro muito atenção à reação de Carol e sua mãe na cena em que o filho de Carol recebe atendimento médico pelo qual a família jamais imaginou ter direito, já que ele sempre lhes foi negado.

Foi impossível não estabelecer relações com outro filme que já assisti três ou quatro vezes: “Um ato de coragem”.

Aqui o ator principal é Denzel Washington. Pai de um menino que precisa, urgentemente de um transplante de coração, seu personagem, John Q. Archibald, se vê às voltas com as burocracias do sistema privado de saúde. Para que seu filho, Michael (Daniel E. Smith), seja atendido, o plano do qual John é proprietário tem que cobrir despesas não previstas. Pior: para ir para o começo da fila de transplante suas condições financeiras também exercem papel relevante. John não tem dúvidas: desesperado para defender a possibilidade de vida que resta a Michael, recorre às armas e fecha o hospital, fazendo várias pessoas de reféns.

O filme transpira aquela sensação de suspense eterno, em que qualquer medida pode dar em resultados catastróficos. O fator desencadeador das ações de John, no entanto, se assemelha ao roteiro de “Melhor é impossível”: o acesso a tratamento médico é visto como mera mercadoria.

Há algumas observações interessantes que devem ser feitas por quem se animar a ver ou rever o filme. Uma delas é o comportamento da instituição privada e de seus dirigentes; outra, os dados que vão aparecendo ao longo do filme nas falas dos diversos atores. Para os assistentes sociais, é bastante interessante perceber, ainda, quem pode ser o trabalhador social responsável pelo atendimento a John e sua esposa Denise (Kimberly Elise) e que valores éticos estão sendo ali defendidos.

Mas o mais legal, em minha opinião, é perceber que estas afirmações e informações não foram tiradas do acaso: ao ver o documentário sobre o sistema de saúde americano nos “extras” do DVD ficamos sabendo que eles são reais. Milhões de americanos não têm acesso sequer às longas filas de atendimento que caracterizam o sistema público de saúde em nosso país. Não têm opção: endividam-se, ou morrem. A lógica da saúde-mercadoria é levada ao extremo, não só no filme, mas também na vida.

Poderíamos argumentar que, ainda assim, os dois filmes são mera ficção – e isso é inegável. Mas parece-me que temos que nos sensibilizar para o fato de que na forma de fazer política nos EUA um dos mais potentes instrumentos para também incomodar aos governos locais é o próprio cinema.

Digo isto para chegar ao terceiro filme, “SOS Sicko”. Trata-se de um documentário ao estilo de seu diretor, Michael Moore. A crítica de cinema publicada na grande imprensa à época de seu lançamento resistia a qualificar o filme (bem como os demais do mesmo diretor) de “documentário”. Para os críticos faltava a “neutralidade” necessária para tanto. Um paralelo interessante pode ser visto em parte dos jornais desta semana que analisam o documentário “Ao sul da fronteira”, de Oliver Stone, sobre alguns presidentes latinoamericanos. O filme é visto como um “panfleto chavista”, para ficar em um único argumento levantado. Michael Moore se recusa a fazer filmes “neutros”, ainda que, pelo que sei, só tenha filmado documentários. Para produzir “SOS Sicko” o diretor esparramou pelos EUA a notícia de que seu próximo filme trataria situações concretas às quais estaria submetido o povo americano em relação ao atendimento médico. Milhares de pessoas fizeram contato e, destes, foram selecionados os que tiveram as situações que viveram levadas ao cinema. Vale perceber como nos diversos relatos é possível estabelecer conexões imediatas com as situações vividas pelos personagens Simon e John.

Há, ainda, lances geniais de Moore. Em um deles, o diretor faz uma viagem de barco a Cuba e solicita, por um megafone, que as pessoas que necessitam de atendimento médico e que estão com ele no barco sejam atendidas na prisão de Guantánamo. Obviamente sua intenção é negada e reprimida, ameaçada de sanções, e os viajantes se dirigem, então, a Havana, onde contrastes entre sistemas públicos e privados de saúde são expostos a nu. Quem compartilha da opinião dos críticos de que documentários devem ser “neutros” certamente se incomodará com o filme. Quem, por outro lado, reconhece que não há neutralidade e que o mais honesto é anunciar abertamente a tese defendida pode ter em “SOS Sicko” uma deliciosa e provocante reflexão sobre panos de fundo que envolvem o debate que aqui estou tentando provocar. Ainda que se possa discordar de um ou outro aspecto do filme.

Concluindo

Paro por aqui. Os diversos governos brasileiros (federal, estaduais e municipais) têm responsabilidade central pela situação a que está sendo submetida a saúde pública no país. Basta nos atentarmos para os valores que são desviados da política de saúde para pagamento de dívidas (que o povo brasileiro não contraiu!) com credores internos e externos. Isto não nos isenta de nos incomodar com a forma como esta conjuntura tem feito com que percamos a capacidade crítica de perceber que, pelos nossos poros e consciências, estão avançando elementos próprios de uma sociedade que não transforma apenas o homem em mercadoria, mas pretende fazê-lo com todas as formas de sua objetivação. Com resultados mais que previsíveis: já anunciados.

Algumas informações sobre os filmes


Melhor É Impossível













Titulo original: As Good As It GetsDireção: James L. Brooks
Lançamento: 1997 (EUA)
Atores: Jack Nicholson , Helen Hunt , Greg Kinnear , Cuba Gooding Jr. , Skeet Ulrich


Um Ato de Coragem




 
 
 
 
 
 
 
 
 
Titulo original: John Q
Lançamento: 2002 (EUA)
Direção: Nick Cassavetes
Atores: Denzel Washington , Robert Duvall , James Woods , Anne Heche , Eddie Griffin


Sicko - S.O.S. Saúde




 
 
 
 
 
 
 
 
 
Titulo original: Sicko
Lançamento: 2007 (EUA)
Direção: Michael Moore


Ao sul da fronteira

Título original: South of the border
Lançamento: 2009 (EUA)
Direção: Oliver Stone


Dicas adicionais


A cartilha do IDEC integrou campanha promovida em 2003. Você encontra mais informações em http://www.idec.org.br/emacao.asp?id=379

No link http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/infomoney/2010/06/07/plano-de-saude-novas-coberturas-farao-precos-subirem-diz-pro-teste.jhtm  é possível conhecer análise de que os preços dos planos de saúde privados tendem a aumentar, em função de novos procedimentos previstos. A mesma matéria reconhece que há situações (como transplante de rim, pulmão ou coração) que só são feitos pelo SUS. Vale a consulta.


Jefferson Lee de Souza Ruiz é bacharel e mestrando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profissionalmente, atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social do mesmo Estado.

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