sábado, 20 de novembro de 2010

Editoria Caleidoscópio Baiano

Direitos culturais como expressão dos direitos humanos
alguns eixos para a formulação de políticas


                                                                                                                                foto: Mione Sales

 
Claudia Correia(*)
 
 
Não consigo conceber os direitos culturais dissociados dos Direitos Humanos e dos princípios éticos que inspiraram a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU aprovar em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Brasil, signatário desse valioso pacto mundial em defesa da liberdade, da justiça social e da igualdade ainda precisa avançar muito na efetivação destes direitos. Os primeiros passos foram dados recentemente, contextualizando a Política Nacional de Cultura no cenário sócio-econômico e político brasileiro e abrindo espaços para atores sociais expressarem suas históricas demandas, tendo vez e voto.

Em recente entrevista à Revista Muito (Jornal A TARDE, Salvador, Bahia, novembro 2010), Zulu Araújo, Presidente da Fundação Palmares, definiu bem as três dimensões da cultura. Ele destacou o aspecto simbólico, da produção artística, a natureza econômica do universo cultural que envolve geração de emprego, renda e trocas de mercadorias com valor de bens patrimoniais e a relevante dimensão do direito de cidadania que a cultura implica. Fiquei muito contemplada com esta percepção apurada, ampla, abrangente, fundamental para gestores da Política Pública de Cultura num país marcado pela diversidade cultural como o nosso.

A garantia do direito à cultura está prevista na Constituição Federal brasileira:

"Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2.º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais."

Já o art. 244, estabelece que "A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme disposto no artigo 227, § 2º."

Se articularmos estas duas intenções fica clara a necessidade de assegurar a todos, e de maneira especial aos portadores de deficiência, o acesso aos bens culturais existentes em nosso país, tais como museus, cinemas, bibliotecas, galerias, núcleos históricos, sítios arqueológicos etc.

Além disso, em muitos estudos encontramos a defesa desta tese: “O direito de acessibilidade aos bens culturais encontra fundamentos, ainda, no princípio da isonomia e no princípio da fruição coletiva do patrimônio cultural, segundo os quais todos os cidadãos devem ter iguais condições de conhecer, visitar e obter informações sobre os bens integrantes do patrimônio cultural nacional.”.

Assim, também não concebo o direito à cultura sem lembrar dos segmentos que se mantêm à margem do acesso a bens produzidos socialmente que acabam restritos a poucos. É urgente assegurar a produção e a acessibilidade das pessoas deficientes aos bens culturais.

Estes e outros temas foram muito debatidos durante a II Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília de 11 a 14 de março de 2010. Diversos segmentos organizados estiveram lá para defender propostas, fruto de um intenso processo de mobilização social que envolveu poderes públicos e entidades sociais de todas as regiões brasileiras.

Aproveito algumas propostas debatidas nos principais eixos temáticos do evento e encampadas pelo movimento nacional de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais e travestis para pontuar algumas estratégias para efetivarmos os direitos culturais. Transcrevo a seguir as principais sugestões debatidas por este segmento como uma contribuição ao debate sobre a garantia dos direitos culturais, inserida na mobilização social pela construção da democracia brasileira.


PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL

1. Produção de Arte e Bens Simbólicos

- Implementar políticas de intercâmbio em nível regional, nacional e internacional entre os segmentos artísticos e culturais englobando das manifestações populares tradicionais às contemporâneas que contemplem a realização de mostras, feiras, festivais, oficinas, fóruns, intervenções urbanas, dentre outras ações, estabelecendo um calendário anual que interligue todas as regiões brasileiras, com ampla divulgação, priorizando os grupos mais vulneráveis às dinâmicas excludentes da globalização, com o objetivo de valorizar a diversidade cultural;

- Registrar, valorizar, preservar, e promover as manifestações de comunidades e povos tradicionais (conforme o decreto federal 6.040 de 7 de fevereiro de 2007), itinerantes, nômades, das culturas populares, comunidades ayahuasqueiras, LGBT, de imigrantes, entre outros, com a difusão de seus símbolos, pinturas, instrumentos, danças, músicas, e memórias dos antigos, por meio de apresentações ou produção de CDs, DVDs, livros, fotografias, exposições e audiovisuais, incentivando o mapeamento e inventário das referências culturais desses grupos e comunidades;

- Garantir políticas públicas de combate à discriminação, ao preconceito e à intolerância religiosa por meio de: a) campanhas educativas na mídia, em horário nobre, mostrando as diversas raças e etnias existentes em nosso país, ressaltando o caráter criminoso da discriminação racial; b) demarcação de terras das populações tradicionais (ribeirinhos, seringueiros, indígenas e quilombolas), estendendo serviços sociais e culturais a essa população, a fim de garantir sua permanência na terra; c) campanhas contra a homofobia, visando respeito à diversidade sexual e identidades de gênero;

- Implementar a Convenção da Diversidade Cultural por meio de ações sócio-educativas nas diversas linguagens culturais (literatura, dança, teatro, memória e outras), e as linguagens específicas próprias dos povos e culturas tradicionais, conforme o decreto federal 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, dirigidas a públicos específicos: crianças, jovens, adultos, melhor idade.


CULTURA, EDUCAÇÃO E CRIATIVIDADE

- Articular a política cultural (MINC e outros) com a política educacional (MEC e outros) nas três esferas governamentais para elaborar e implementar conteúdos programáticos nas disciplinas curriculares e extracurriculares dedicados à cultura, à preservação do patrimônio, memória e à história afrobrasileira, indígena e de imigrantes ao desenvolvimento sustentável e ao ensino das diferentes linguagens artísticas, inclusive arte digital e línguas étnicas do território nacional, de matriz africana e indígena, e ao ensino de línguas, inserindo-os no Plano Nacional de Educação,sob a perspectiva da diversidade e pluralidade cultural, nas escolas, desde o ensino fundamental, universidades públicas e privadas, com a devida capacitação dos profissionais da educação, por meio da troca de saberes com os mestres da cultura popular nos sistemas municipais, estaduais e federais, bem como garantir condições financeiras e pedagógicas para a efetiva aplicação da disciplina "Língua e Cultura Local";

- Instituir a lei Griô, que estabelece uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral, em diálogo com a educação formal, para promover o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro, por meio do reconhecimento político, econômico e sociocultural dos Grios Mestres e Mestras da tradição oral, acompanhado por uma proposta de um programa nacional, a ser instituído, regulamentado e implantado no âmbito do MINC e do Sistema Nacional de Cultura.


CULTURA, COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA

- Garantir que o acesso à internet seja realizado em regime de serviço público e avançar com a formulação e implantação do Plano Nacional de Banda Larga, contemplando as instituições culturais e suas demandas por aplicação e serviços específicos;

- Regulamentar e implementar o capítulo da comunicação social na Constituição Federal, tendo em vista a integração das políticas de comunicação e cultura, em especial o artigo 223, que garante a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. Fortalecer as emissoras de rádio e TV do campo público (comunitárias, educativas, universitárias e legislativas) e incentivar a produção simbólica que promova a diversidade cultural e regional brasileira, produzida de forma independente. Implantar mecanismos que viabilizem o efetivo controle social sobre os veículos do campo público de comunicação e criar um sistema de financiamento que articule a participação da União, estados e municípios.


2. Cultura, Cidade e Cidadania

- Estabelecer uma política nacional integrada entre os governos federal, estaduais, municipais e no Distrito Federal, visando à criação de fontes de financiamento, vinculação e repasses de recursos que permitam a instalação, construção, manutenção e requalificação de espaços e complexos culturais com acessibilidade plena: teatros, bibliotecas, museus, memoriais, espaços de espetáculos, de audiovisual, de criação, produção e difusão de tecnologias e artes digitais, priorizando a ocupação dos patrimônios da União, dos estados, municípios e do Distrito Federal em desuso no país;

- Criar marco regulatório (Lei Cultura Viva) que garanta que os Pontos de Cultura se tornem política de Estado, garantindo a ampliação no número de Pontos, contemplando ao menos um em cada município brasileiro e Distrito Federal, priorizando populações em situação de vulnerabilidade social, de modo a fortalecer a rede nacional dos Pontos de Cultura.


MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

- Incluir na agenda política e econômica da União, estados, municípios e no Distrito Federal o fomento à leitura por meio da criação de bibliotecas públicas, urbanas e rurais em todos os Municípios, com fortalecimento e ampliação dos acervos bibliográficos e arquivísticos, infraestrutura, acesso a novas tecnologias de inclusão digital, capacitação de recursos humanos, bem como ações da sociedade civil e da iniciativa privada, com o objetivo de democratizar o acesso à cultura oral, letrada e digital;

– Propiciar condições plenas de funcionamento ao Ibram de modo a garantir com sua atuação, que os museus brasileiros sejam consolidados como territórios de salvaguarda e difusão de valores democráticos e de cidadania, colocadas a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar o fortalecimento e a manifestação das identidades, a percepção crítica e reflexiva da realidade, a produção de conhecimento, a promoção da dignidade humana e oportunidades de lazer.


ACESSO, ACESSIBILIDADE E DIREITOS CULTURAIS

– Criar dispositivos de atualização da lei de direitos autorais em consonância com os novos modos de fruição e produção cultural que surgiram a partir das novas tecnologias, garantindo o livre acesso a bens culturais compartilhados sem fins econômicos desde que não cause prejuízos ao(s) titular(es) da obra, facilitando o uso de licenças livres e a produção colaborativa, considerando a transnacionalidade de produtos e processos, de forma que se atinja o equilíbrio entre o direito da sociedade de acesso à informação e à cultura e o direito do criador de ter sua obra protegida, assim como o equilíbrio entre os interesses do autor e do investidor;

– Assegurar a destinação dos recursos do Fundo Social do Pré-sal para a cultura, aos programas de sustentabilidade e desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura, ampliando os investimentos nos programas que envolvam convênios entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal.


3. Cultura e Desenvolvimento Sustentável

CENTRALIDADE E TRANSVERSALIDADE DA CULTURA

– Implementar e fortalecer as políticas culturais dos estados, a fim de promover o desenvolvimento cultural sustentável, reconhecendo e valorizando as identidades e memórias culturais locais – incluindo regulamentação de profissões de mestres detentores e transmissores dos saberes e fazeres tradicionais, ampliando as ações intersetoriais e transversais por meio das interfaces com a educação, economia, comunicação, turismo, ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente, segurança pública e programas de inclusão digital, com estímulo a novas tecnologias sociais de base comunitária;

- Incentivar a criação e manutenção de ambientes lúdicos, para o desenvolvimento de atividades artísticas e culturais em escolas públicas e espaços educacionais sem fins lucrativos, museus, hospitais, casas de saúde, instituições de longa permanência, entidades de acolhimento e abrigos, CAPs, CAPs – AD (Centro de Atenção Psicossocial), centros de recuperação de dependentes químicos e de ressocialização de presos (Apacs) e presídios.


CULTURA, TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO LOCAL

– Promover, em articulação com o MEC, organizações governamentais e não governamentais, a criação de cursos técnicos e programas de capacitação na área cultural para o desenvolvimento sustentável;

– Fomentar e ampliar observatórios e políticas culturais participativas, com o objetivo de produzir inventários, pesquisas e diagnósticos permanentes, também em parceria com universidades e instituições de pesquisa, subsidiando políticas públicas de cultura, articuladas intersetorialmente e territorialmente, com ações capazes de preservar os patrimônios cultural e natural, inserindo as histórias locais nos conteúdos das instituições educacionais, identificando e valorizando as tradições e diversidade culturais locais, aproximando os movimentos culturais das questões sociais e ambientais, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável local e a redução das desigualdades regionais.


PATRIMÔNIO CULTURAL, MEIO AMBIENTE E TURISMO

- Promover e garantir o reconhecimento, a defesa, a preservação e a valorização do patrimônio cultural, natural e arquivístico a partir de inventários e estudos participativos, em especial nas comunidades tradicionais, estimulando o turismo comunitário sustentável, por meio da articulação interministerial com participação popular, que crie parâmetros para a atuação nessa vertente da economia da cultura e destine recursos, inclusive por meio de editais, para a implantação e o fortalecimento de roteiros turísticos que articulem patrimônio cultural, memórias, meio ambiente, tecnologias, saberes e fazeres, valorizando a mão-de-obra local/regional, com a realização de ações voltadas para a formação, gestão e processos de comercialização da produção artístico-cultural da região.



(*) Claudia Correia – Assistente social, jornalista, profª da ESSCSal, Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Contato: ccorreia6@yahoo.com.br.

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