domingo, 17 de abril de 2011

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

Sopros de oxigênio na tv aberta brasileira?
Homofobia e tortura viram debate público a partir de programas de TV

Jefferson Ruiz*



Adoro esportes. Quase não vejo novelas.
Nas últimas semanas um fato esportivo e um lançamento de novela fizeram boa parte do país debater questões importantes para a história e o momento atual no Brasil: homofobia e tortura.
Escrevo na sexta-feira, dia 15 de abril. Está começando o terceiro jogo de uma semifinal da Liga Nacional de vôlei masculino, em Contagem (MG), entre Cruzeiro e Vôlei Futuro. No primeiro jogo, na mesma cidade, toda vez que um atacante do Vôlei Futuro, Michael, ia para o saque era recebido por duas mil vozes: “Bicha, bicha, bicha”. Às vezes havia as (in)devidas variações (“Veado, veado, veado”). As palavras do jogador: “Já estava acostumado a ouvir coisas como estas, há anos. Mas foi a primeira vez que um coro unânime, de mulheres, senhoras, crianças, jovens tentavam me desestabilizar com algo que nada tem a ver com a partida. Conseguiram...”.
Michael apresentou-se ao público, nos dias seguintes à partida, como assumidamente homossexual. Disse que jamais escondeu o fato de ninguém, em nenhum dos clubes pelos quais passou. Mas tampouco o anunciou, por considerar que sua orientação sexual nada tinha a ver com o esporte que pratica. Também disse que, para ele, esta sempre foi uma questão da esfera privada. Mas que resolveu, a partir do jogo de Contagem, anunciar publicamente que prefere pessoas do mesmo sexo em suas relações afetivas, para tentar que o fato não se repetisse (com ele ou outros esportistas).



Polêmicas à vista. Há ao menos uma semana o mundo do esporte (e os que o curtem, que não são poucos no Brasil) entrou no debate. Programas esportivos, personalidades públicas, movimentos sociais, Ministério Público, mesas de bar, cada um tinha algo a dizer. Matérias sobre o tema foram além dos noticiários de esporte, chegando aos jornais e aos programas de reportagem. Como era de se esperar, não houve posição unânime. Alguns defenderam que “a turma do politicamente correto quer tirar a graça do esporte” (como se ela viesse não da qualidade de sua prática, mas de depreciar o adversário). Outros não tiveram dúvidas em relacionar o fato com a homofobia crescente no país. Dados do Grupo Gay da Bahia demonstram que tem aumentado sensivelmente o número de homicídios da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis) no país. Em média, a cada dois dias um assassinato (as pesquisas do GGB baseiam-se nos dados que chegam ao conhecimento público).
Sábado passado, segundo jogo da semifinal, cidade de Araçatuba (180 mil habitantes, interior de um estado tido politicamente como conservador – São Paulo), sede do Vôlei Futuro. O canal aberto de maior audiência do país (Globo) transmite a partida ao vivo. Logo no início do jogo é aberta uma enorme bandeira, que enche uma das arquibancadas, contra a homofobia. O Vôlei Futuro entra em quadra com todos seus jogadores vestindo camisas cor de rosa e seu líbero (jogador que atua na defesa, revezando o jogo todo com atacantes, a critério do técnico da equipe) atua o jogo todo com uma camiseta com as cores do arco-íris. Empatada a série de confrontos em 1 x 1, o desempate fica agendado para a partida que estou assistindo agora. Neste meio tempo, o Ministério Público condenou o Cruzeiro ao pagamento de uma multa de R$ 50 mil, em função do comportamento de sua torcida. O clube recorreu.




Bem, acabam de ir ao ar no canal SporTV imagens do mesmo ginásio que, em uníssono, tentou prejudicar Michael no jogo passado por sua orientação sexual. Hoje, faixas de apoio ao Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia no Brasil; torcedoras do Cruzeiro com cartazes de apoio a Michael; torcedores mineiros de movimentos sociais, que afirmam ser cruzeirenses, com bandeiras do arco-íris e apoio à diversidade sexual. O jogo tende a ter outro clima. A torcida vai pressionar, gritar, torcer, ajudar sua equipe. Mas, ao que parece, há uma lição sendo aprendida.

Amor e revolução: o “trash” não impede o debate
Há duas terças, em horário bastante impróprio para quem trabalha pela manhã do dia seguinte, uma novela entra em cartaz na TV aberta, no SBT. Li uma reportagem na imprensa escrita, fui ao youtube e me surpreendi com algumas das cenas. Tortura aberta, sem meios-termos. Afogamentos, choques elétricos, pau-de-arara, abusos sexuais para obter confissões sobre os líderes da possível organização do comunismo no Brasil. O contexto é o golpe militar de 01 de abril de 1964. Os personagens mais reacionários chamam o golpe de “contrarrevolução, para evitar que uma revolução como a russa ou a cubana se instale no país”. Alguns militares discordam do golpe, mas são devidamente isolados (chegando a ser, mesmo, baleados pelos defensores do novo regime). Do outro lado, estudantes, camponeses, militantes de partidos de esquerda, artistas de teatro, jornalistas se mobilizam para reagir como podem ao golpe. Dentre eles saem os torturados.




Resolvo ver, quando consigo, um ou outro capítulo. Há cenas muito “trash”, quase inacreditáveis de artificiais. Em algumas cenas de tortura o chefe da polícia simula um telefone tocando e atende: “Che Guevara? Claro que ela está! Já vai falar com você”. O “atender ao telefone” é o choque aplicado na mãe, militante, separada de suas duas filhas, babá assassinada pela repressão, marido morto após tortura em hospital. A figura do Che é substituída seguidamente: Mao, Fidel Castro, Luís Carlos Prestes e outros são os que “ligam” para a militante torturada. A cena se repete dias a fio... Outras cenas são excelentes e muito realistas – e, como não poderia deixar de ser, chocantes e tristes. Alguns dos atores e atrizes, já “no papel”, se destacam entre vários rostos desconhecidos.



Para dar “o clima” de novela, uma estudante revolucionária e um militar contra o golpe se apaixonam quase que à primeira vista. Ele, da família “Guerra”. Ela, da família “Paixão”. É de duvidar que seja coincidência...

Ainda assim, blogs e páginas na internet, jornais de grande circulação, mesas de bar e papos politizados começam a prestar alguma atenção na novela. Militares brasileiros organizam um abaixo-assinado. Sua intenção? Censurar a novela, tirando-a do ar, “por ser depreciativa à história dos militares brasileiros”. Acusam o SBT de levar a novela ao ar para agradar a atual presidenta da república e negociar as dívidas de seu proprietário, Sílvio Santos, em função da falência do Banco Panamericano, de sua propriedade.

Duas coisas chamam mais minha atenção na novela. A primeira: os finais de cada capítulo. Neles, pessoas reais que vivenciaram os “anos de chumbo” no Brasil deixam seus depoimentos. A maioria delas relata como foram torturados, como perderam ou foram afastados de familiares, como não conseguiram se recuperar de traumas vivenciados há cerca de quarenta anos. Mas há, também, Jarbas Passarinho quase raivoso (e provocando a nossa raiva, como não?), justificando a “reação aos comunistas” e dizendo que os militares foram quem “garantiram a democracia brasileira”. A segunda: a abertura da novela. Nela, há cenas como a estudante que coloca uma flor na metralhadora do oficial militar; jornalistas e/ou militantes que desaparecem em “cena aberta” (lembremo-nos que um dos debates brasileiros atuais é a recuperação da memória dos tempos da ditadura, com a criação da Comissão da Verdade). Destaque-se, ainda, a trilha sonora da novela: clássicos como Roda Viva, Pra não dizer que não falei de flores, Carcará e outros (embora nem sempre utilizadas com bom gosto para quem não curte muito novela...).


Desconcentração dos meios de comunicação: exigência urgente

Óbvio que dois exemplos isolados não eliminam o rumo que hegemoniza a televisão (e os demais meios de comunicação) no Brasil. São exceções. Bem vindas, raras, louváveis, mas absolutas exceções. Em geral, o que se defende é a sociedade capitalista, a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, o “American way of life”, o preconceito contra minorias e maiorias (como negros e mulheres) em programas de humor e afins. Em um país em que 43% da população passam mais de três horas diárias diante da televisão, tais defesas tendem a moldar comportamentos, formar opinião, limitar espaços de disputa democrática e de debate real, especialmente de alternativas de formas de organização da sociedade.

Parece-me, no entanto, que estes sopros de oxigênio (tão fugazes quanto os que os personagens de Amor e Revolução têm quando tiram suas cabeças dos tonéis de afogamento em que são torturados) demonstram ser possível e necessário que os meios de comunicação cumpram papel social de instalar o debate público sobre temas de interesse nacional. Não tenho dúvidas de que para isso é necessário que assumamos como prioritária a pauta da democratização da posse dos meios de comunicação no país. Mesmo que nos limites da sociedade capitalista neste momento, não é mais possível permitir que cinco (no caso das televisões) ou onze (nos meios de comunicação em geral) famílias continuem ditando as informações que chegam a grande parte dos brasileiros, pautando os papos de bar, elevador, ambientes de trabalho, churrascos, escolas e círculos de amigos, dificultando sobremaneira as condições de crítica e mobilização em torno de uma sociedade efetivamente justa.



Nós, do blog Mídia e questão social, estamos nos somando às lutas realizadas neste sentido.



Jefferson Lee de Souza Ruiz é bacharel e mestrando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profissionalmente, atua como assessor político do Conselho Regional de Serviço Social do mesmo estado.

2 comentários:

  1. Caros blog-leitores,

    Queria, em primeiro lugar, cumprimentar o Jeff por atualizar os que estão morando fora sobre esta programação inovadora na TV aberta brasileira.

    Depois disso, assisti pelo facebook vários depoimentos apresentados ao final da novela. Testemunhos realmente relevantes que acrescentam ao que foi socializado até agora.

    No entanto, tem havido uma pressão para impedir ou atenuar o teor dos depoimentos. Nessa direção, circula, inclusive, um abaixo-assinado online que reivindica:

    «Temos direito de assistir
    a novela "Amor e Revolução" sem censura e como foi concebida».

    Assino embaixo.

    Saudações engajadas,

    Mione*

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, Jeff. Saudações campineiras. Vamos à Luta!

    Paulo

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário e/ou impressão...