quarta-feira, 27 de abril de 2011

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

Abutres, um thriller social
ou uma tragédia com sotaque latino-americano




« El resignado
ejercicio del verso no te salva
ni las aguas del sueño ni la estrella
que en la arrasada noche olvida el alba.
Una sola mujer es tu cuidado… »

JORGE LUIS BORGES
Mione Sales*


Eis um grande filme argentino. Moderno, urbano, tem ação, mas não deixa a qualidade do roteiro cair. Tem a gravidade e a lentidão, por vezes, dos Pampas, qual o começo de um tango de Gardel, para depois atingir o ápice das notas musicais, sem abandonar, todavia, a atávica melancolia que produziu naquela região um Jorge Luís Borges e um Julio Cortázar. Por isso, hesitamos em classificá-lo apenas como um thriller social, pois ele flerta inapelavelmente com a tragédia.


Cinema e questão social

Eis por que me custa acreditar que alguns intelectuais não apreciem o cinema ou dediquem tão pouco interesse à matéria. Porém, justiça seja feita, nem sempre o cardápio cinéfilo está realmente à altura ou justifica interromper o fluxo crítico e criativo de mentes mergulhadas em múltiplas e densas reflexões.




Por outro lado, não é fácil também para aqueles que trabalham na área social – assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, sociólogos, médicos e também jornalistas - aderir à sugestão de voo proposta por certos dramas ficcionais contemporâneos, que se valem farta e repetidamente do tema da violência. Certas fitas só embrutecem, porque agridem ainda mais sensibilidades calejadas pelo cotidiano das instituições. Assim, ao invés de nos acordarem para uma maior consciência crítica, deixam-nos, ao final, esvaziados, derrotados e, pior, sem qualquer nova percepção sobre a questão social. Em tais filmes, costuma-se servir mais do mesmo, narrado apenas com um pouco mais de talento aqui e acolá por atores e diretores.

Ousada tarefa cinéfila, portanto, essa de partir da realidade nua e crua, assegurando criticidade, entretenimento e maior consciência aos espectadores acerca do quanto somos ou podemos ser humanos, demasiadamente humanos.




« Carancho »: mais coragem do que homem 

Fui, assim, tomada de genuína surpresa, ao assistir a película argentina « Abutres » (2010), do diretor Pablo Trapero. O título original, « Carancho », mais sonoro e poético, refere-se a um pássaro semelhante ao nosso falcão Carcará (Polyborus plancus), cantado em verso e prosa pela Tropicália. A tradução brasileira carregou nas tintas, querendo acentuar talvez o aspecto necrófago, não sem razão, visto que o filme fala de mortes provocadas por acidentes nas estradas argentinas.

Carancho, uma ave de rapina, seria, pois, talvez o título mais apropriado - o qual foi resguardado em francês -, visto que o roteiro refere-se justamente a algumas figuras ligadas a inescrupulosos escritórios de advocacia que espreitam e fazem de feridos e mortos nas estradas argentinas presas fáceis. Oferecem (falso) serviço às famílias da(s) vítima(s), ao lhes propor o encaminhamento da papelada relativa ao seguro. São ações empreendidas, de fato, mas cujo valor é embolsado em mais da metade por esses agentes.




A trama de « Carancho » desenrola-se em torno de um hospital de emergência, tendo como uma das protagonistas, Luján (Martina Gusman), uma médica plantonista socorrista. Na ocasião de um desses atendimentos de primeiros socorros na madrugada, ela vai conhecer o advogado « carancho », Sousa (Ricardo Dárin). A denúncia social propiciada por esta película vai-se somar um drama humano universal: o amor que irrompe nos lugares e condições mais insólitas.


Sobre ética, trabalho e « alma pequena »: tudo vale a pena?



Carcará, alimenta-se de animais vivos e mortos
  
A ética, portanto, mais que irrompe, explode como tema de reflexão em « Carancho »: o que fazer em determinadas situações de vida, em que parece não haver escolha? A necessidade de sobreviver justifica aceitar todo e qualquer tipo de trabalho, mesmo aqueles que espoliam o próximo? Sem excetuar a responsabilidade de cada um dos personagens por suas escolhas, a sensação é de que eles estão mergulhados numa profunda solidão. A crise social e econômica, que agudiza os problemas e piora a qualidade de vida de todos, encurta-lhes sobremaneira os horizontes e expectativas. Por isso, rendem-se, trapaceiam, acovardam-se, encolhem-se, contorcem-se de dor, anestesiam-se ou tentam fugir.

O espectador é envolvido assim pelo conhecimento de uma realidade que existe, mas que nem sempre alcançamos diretamente pela nossa experiência profissional e pessoal. Assistir « Abutres » fez-me lembrar do antigo caso das máfias de funerárias que atuavam no entorno dos grandes hospitais de emergência no Rio de Janeiro; máfias que se articulavam à difícil arte de liberação de um atestado de óbito. O que deveria ser de uma evidência muito clara e um direito era complicado pelos « manipuladores da burocracia », ligados ao negócio dos caixões, com vistas à extorsão de dinheiro dos familiares das vítimas.

Qual Antígona, personagem da mitologia grega, bem sabemos, todos querem enterrar os seus mortos, logo veem-se sob a pressão de prover o que for necessário para liberar o corpo e permitir o descanso final para os entes queridos. No filme como na vida real. Esse é o veio que foi explorar com talento o diretor argentino Pablo Trapero, que vem se consagrando justamente por tocar nas feridas sociais da terra das milongas. Seu anterior, « Leonora », abordava o drama das mães presidiárias e provocou mudanças na sociedade argentina. Tudo indica que « Carancho » segue o mesmo caminho.

De volta à película argentina, impressiona particularmente, ao longo das cenas de « Carancho », o descortinar das relações de trabalho na área da Saúde. Tempos sombrios ali imperam. O ofício de Hipócrates, a Medicina, desceu aos porões. Ser médico tornou-se uma profissão como outra qualquer, tão banalizada quanto as vidas que são arrancadas à força nas colisões de trânsito das grandes cidades.

A superexploração mostra os seus dentes e para resistir à imensa carga de trabalho, a protagonista recorre às drogas, a se imolar como uma « Cristiane F. ». Não tem 13 anos nem se prostitui, mas precisa desse recurso para não sucumbir frente ao ritmo frenético do serviço de emergência, com seu estrago em matéria de dor da alma e do corpo. Médico e paciente veem-se, assim, quase confundidos, desprotegidos, face ao estado de coisas atual.


« Pega, mata e come » – um thriller que também é arte


« Abutres » não é, portanto, um filme « levinho », aquela « boa diversão » que garante um chopp relaxado depois da sessão. Saí trêmula do cinema, mas inteira, recompensada por uma grande película. Nada ali era leviano, excessivo ou escolhido apenas para chocar o espectador. Tudo fazia parte do contexto da trama, ou seja, do nosso velho drama latino-americano – a corrupção -, muito embora o filme consiga, por vezes, dar a sensação de desterritorialização, donde a sua universalidade. Abutres, filme com ares de documentário e embalado por uma excelente trilha musical, é cinema de verdade, ou seja, é arte em imagens.

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Mione Sales – é assistente social e professora da FSS/Uerj, doutora em Sociologia (USP) e graduada em Literatura Geral e Comparada (Paris 3). Contato: mionesales@gmail.com 

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Em novembro de 201O, « Abutres » integrou a Mostra de Direitos Humanos, no CineSesc, na cidade de São Paulo e esteve em cartaz no início deste ano em Paris.
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Links
Para ver
http://www.youtube.com/watch?v=jiZVh4pCveo

[Trailer do filme]

[O diretor, Pablo Trapero]

Para consultar

[Ficha técnica do filme]
http://www.lesinrocks.com/cine/cinema-article/t/58286/date/2011-02-01/article/carancho-un-suspense-romantique-sous-influence-scorsesienne/


[Crítica francesa Les Inrocks]

[Sobre o Carcará ou Carancho]
[“Carcará”, Composição: João do Vale e José Cândido]

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