domingo, 14 de agosto de 2011

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

« Só de ciúme »
Inquietações sobre violência de gênero e novos tipos de machismo


Mione Sales*


Não vê que está ficando ‘démodé’ ?

« O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias »

C. VELOSO / MAIAKOVSKI



Quando mais jovem, tive por momentos a ilusão de que certas contradições sociais eram decorrência de uma mentalidade conservadora, em tese ligada às pessoas mais velhas (parentes, professores, governantes e demais figuras imbuídas de autoridade). A poesia cearense, na composição de Belchior « Como nossos pais », felizmente, cumpriu o papel de ensinar a mim - e ao Brasil - que valores e ideologia não eram uma questão de idade, sendo bem mais complexos (em seus aspectos objetivos e subjetivos) e históricos.

Logo, o “novo” – novo homem, nova mulher, novos valores - não se constrói de forma linear nem é algo estanque, apesar da ferida que isto provoca em nosso romantismo revolucionário ou estranha utopia, como gosta de qualificar Jefferson Ruiz, inspirado em J. P. Sartre.

Há quem desista - o que é triste constatar - de posições mais vanguardistas no decorrer da vida, no contato com valores e interesses supostamente mais vantajosos do ponto de vista pessoal. Por isso, a tese conformista difundida pelo senso comum de que certas atitudes críticas e revolucionárias estão ligadas apenas a arroubos juvenis. No entanto, as escolhas ao longo da vida sucedem-se e envolvem situações em que se revelam as motivações éticas dos indivíduos, com seus eventuais abalos, ligados a estímulos materiais com sinal ideológico ao contrário.

Cheguei a acreditar também que, no terreno das relações interpessoais e afetivas, o machismo e a violência tinham os seus dias contados. Seriam, ali no começo dos anos 80, apenas um subproduto de tempos autoritários, o que, no caso do Brasil, confundia-se com sua própria história. Militei brevemente, porém, no movimento feminista em Fortaleza, onde dissipei um pouco dessa ilusão. Minhas convicções feministas perduram até hoje, mas não perdi a esperança de, senão banirmos, reduzirmos a termos ínfimos este “mal” do seio das relações sociais, culturais e amorosas propriamente ditas.

Todavia, “o tempo não pára”, como cantava Cazuza. No terreno das relações intergeracionais, por exemplo, ou seja, entre adultos e crianças, houve progressos, com uma nova consciência, menos autoritária e mais horizontal, se instaurando na criação de filhos – não sem contradições, evidentemente -, fruto da luta incansável de pedagogos e movimentos em defesa dos direitos de crianças e adolescentes em todo o país e no mundo. Houve, em contrapartida, pelo menos, na última década um acirramento de tensões no âmbito das relações conjugais, comprovando que os avanços nesse terreno não constituem algo linear. Chama a atenção em particular, neste contexto, uma banalização da violência masculina em relação à mulher.


Da sua cabeça até a ponta do dedão do pé - possessividade e alienação amorosa



« Para que não mais existam amores servis… »
C. VELOSO / MAIAKOVSKI


Podemos evocar a crise econômica, para ressuscitar a tese da cadeia de reações infelizes: «sou explorado e por vezes humilhado, logo posso descarregar meus humores e frustrações junto aos meus próximos, especialmente sobre a companheira ». Como lucidamente alertam colegas assistentes sociais dedicadas ao tema e feministas em geral, tudo descende do patriarcalismo e disto não discordamos. Porém, identificamos uma nova alquimia na manifestação desta forma de violência e desigualdade na contemporaneidade.  

Apesar do largo alcance das pautas, bandeiras e conquistas do feminismo, é como se o plano intersubjetivo e privado tivesse interagido perversamente com os ares culturais da modernidade. Se, até meados do século XX, violências conjugais se realizavam, mais ou menos discretamente, com o aval da autoridade marital acordada socialmente, freios ético-morais impediam a ultrapassagem de certos limites. Essa era a época em que vigia o dito popular « em briga de marido e mulher ninguém mete a colher », como lembrou Marlise Vinagre, em seu livro sobre a violência contra a mulher, ainda nos anos 90.

Tem-se registrado, no entanto, de forma expressiva em pleno século XXI a violência com fins letais, inclusive no Primeiro Mundo, como mostram vários indicadores. Na França, por exemplo, uma mulher morre a cada 2 dias por violência praticada pelo companheiro e na Espanha, somente depois da adoção de uma lei inédita contra a violência contra as mulheres, os índices de morbidade feminina violenta começaram a baixar: em 2008, foram 76 contra 55 em 2009. Esta (re)incidência de mortes violentas na Europa parece sugerir realmente um malfadado encontro de crise econômica, valores patriarcais reatualizados em contato com a cultura machista de certos grupos de imigrantes africanos, árabes e latino-americanos, e reação insolente de alguns às conquistas feministas.

No Brasil, especialmente no Nordeste, valores e práticas machistas têm, a despeito da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), se convertido, muitas vezes por motivos fúteis, no assassinato de inúmeras mulheres. É como se juntamente com os avanços feministas, as mulheres tivessem perdido um « halo » que as protegia e uma « aura » de respeito, como a que contraditoriamente ainda prevalece na relação dos homens com suas mães.

No entanto, mulheres e mães parecem não constituir uma unidade aos olhos de muitos homens, que mistificam estas últimas e por vezes desprezam aquelas, como se este conjunto de atitudes e valores machistas não acionasse uma roda psíquica e intersubjetiva de sequelas, mágoas e sofrimentos de família a família, de geração a geração. Logo, filhos/homens feridos pelas escolhas e atitudes de pais/homens poderiam fazer diferente, mas nem sempre o fazem e pior, por vezes, superam-lhes em desrespeitos e atrocidades de gênero.


Se você põe aquele seu vestido, eu fico louco de ciúme…

« Faça amor, não faça guerra »
GRAFITE DE MAIO DE 68


Queremos dar um passo além no nosso raciocínio, e comentar sobre o que tem nos inquietado como uma das expressões agudas contemporâneas do machismo e buscar algumas razões para este fato. Não vamos, neste quesito, entrar no terreno de dados e indicadores, mas sugerir a hipótese de que novas atitudes machistas masculinas (não há redundância: mulheres também podem agir sob influência do « machismo ») nas relações amorosas calcadas na heterossexualidade parecem se configurar.

Não se trata mais do machismo que se expressa como reprovação áspera e contudente, diante da suposição ou medo da infidelidade, em virtude de alguma forma de desrespeito circunstancial aos acordos mútuos do casal. A possessividade, como se sabe, provoca imensos estragos nas relações entre homens e mulheres - detendo-nos apenas nesta forma de relação amorosa.

Todavia, parece vir se expandido um outro jeito de ser ciumento: o machismo intolerante, com viés patológico. E o que vem a ser isso? Em geral, trata-se de um homem jovem e bonito, que normalmente nada teria a temer de uma mulher, pois seu tipo masculino encaixa-se no perfil de homem atraente difundido em novelas e revistas. O que é curioso, porém, é que por baixo da aparência de beleza movem-se indivíduos bastante inseguros.

Talvez as noções de performance masculina estejam a atravessar grandes mudanças. As exigências que lhe são impostas parecem ter se acentuado intensamente. Isto certamente suscita em muitos homens profunda angústia. O medo natural da perda do outro transforma-se, assim, em pavor da traição, como fantasma ameaçador da masculinidade. Qualquer gesto feminino, portanto, é encarado como tentativa de denúncia de uma falha no quesito satisfação sexual. A ferida narcísica torna-se, pois, insuportável. Instala-se a paranóia. Em função disso, alguns interagem com suas mulheres de maneira extremamente ciumenta, o que culmina com atitudes persecutórias e violentas, que só se manifestam progressivamente.

Alguns destes homens são sedutores, cultos e refinados, ingredientes que somados ao charme e à beleza, e a uma certa condição financeira, levantam a guarda de qualquer mulher em matéria de romance e projetos de felicidade. O problema é que quando estes homens teriam tudo para serem felizes, juntam-se ou casam-se com estas mulheres, começa a ciranda de brigas provocadas por ciúmes fantasiosos e infundados, que, num crescendo, acabam por culminar em ameaças ou na violência propriamente dita. Nem é preciso dizer que o drama se acentua quando há crianças envolvidas. Há mães que sofrem, por não terem nenhuma tranquilidade em deixar os filhos sozinhos com este tipo de pai.

É claro, vocês podem argumentar, que existem experiências com sinal contrário: mulheres ciumentas que se excedem em palavras e atos. Estou de acordo, mas o que me levou a escrever esta matéria foi justamente a inquietação com uma tendência à expansão desse novo tipo de machismo. Inúmeras mulheres hoje, no Brasil e no mundo, experimentam profunda impotência e se sentem reféns diante de uma situação que, num primeiro momento, parece não ter solução. Sabe-se que terminar a relação é a primeira alternativa, mas nem sempre é evidente, pois teias subjetivas de dependência e projeções as mais diversas operam na cabeça das próprias mulheres e entre os dois.

Sempre que tomo contato com algum relato feminino, cujos contornos litigiosos podem assumir este tipo de proporção, recomendo a procura dos profissionais especializados nas Varas de Família e também na Delegacia de Mulheres, onde psicólogos, assistentes sociais e advogados podem orientar quanto aos procedimentos e medidas de segurança. Cada passo em direção à porta de saída da relação afetivo-conjugal requisita, contudo, muita coragem e envolve rupturas mais profundas. Nada é óbvio nem simples.


Tudo o que é seu, meu bem, é meu, é meu, é meu…  
COISIFICAÇÃO FEMININA E DESCARTABILIDADE: CONTRADIÇÕES GÊMEAS





« Para que a partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos o Universo
E a mãe
Seja no mínimo a Terra ».

C. VELOSO / MAIAKOVSKI




São novas expressões de uma questão social quase atávica, quando o tema são as relações de gênero. No entanto, há traços novos que exigem ser decifrados e mensurados, para que sejam efetivamente combatidos e as mulheres protegidas.

As mulheres viveram profundas transformações sociais e culturais no último século e meio. Escritoras, operárias, damas da sociedade, assistentes sociais e militantes de esquerda deram passos concretos na direção de relações mais igualitárias entre homens e mulheres. No entanto, no decurso do desenvolvimento da sociedade capitalista e do consumo de massa, certas lutas, valores e atitudes em prol da emancipação feminina e de práticas libertárias foram esvaziadas do seu sentido crítico original, transformando-se em mera estandardização do corpo da mulher.

Do ventre grávido à mostra de Leila Diniz e aos belos joelhos da musa da Bossa Nova, Nara Leão, e à « queima dos sutiãs » nos Estados Unidos, todos nos anos 60, aos topless da Praia de Ipanema na década de 90, opôs-se, a partir da década de 80, um rol de mulheres progressivamente desnudadas como objeto, ao lado de mercadorias à venda: carros, geladeiras, apartamentos, cigarros, entre muitas outras. O corpo de instrumento de protesto foi se imbuindo dos valores da sociedade de mercado e se modelando intensificadamente, como « corpos de plástico », à maneira do artista pop americano Andie Warrol que declarou : « (…) eu amo plástico. Eu quero ser de plástico”.

Este processo encontra seu motor de contradição gêmea na reificação do desejo puramente hedonista, antes masculino e agora estendido às mulheres. Ambos parecem, assim, na atualidade, enredados nas teias de afetos e práticas, cuja motivação é essencialmente física e estética. Sabe-se lá por que meandros psíquicos, simbólicos e culturais, este tipo de produção subjetiva coletiva conduz ao favorecimento de práticas de gênero calcadas na descartabilidade do outro? Entenda-se a gravidade da situação, na medida em que esta contradição pode se estender, no limite, em razão da banalização do direito à vida, à proliferação do assassinato de mulheres, como coisa corriqueira.

Se nossas colegas pesquisadoras e feministas têm razão, numa sociedade ainda regida pelo patriarcalismo, a lógica consumista no terreno da afetividade tende, pois, a pender negativamente em favor das mulheres. De objeto de desejo a objeto de repulsa, tem-se uma linha tênue. Prisioneiros de uma insatisfação permanente - espécie de « falta » jamais preenchida por qualquer objeto de consumo, porque recorrente, insaciável, qual crianças frustradas diante do brinquedo longamente desejado e materializado na forma de um presente -, muitos homens não encontram por vezes nenhum consolo na mulher amada. Resultado: a ciranda da busca platônica por um novo objeto do desejo instala-se, sucessivamente.

Se este tipo de mecanismo operava antes, ele se intensifica e se acelera, com mulheres apresentando-se ao desejo masculino como produtos numa esteira industrial. No entanto, como objetos e coisas reais, elas também apresentam defeitos de fabricação. No fundo, não deixam de ser humanas e dão-se conta disso sobretudo a partir do momento em que começam a experimentar na pele atitudes que já não levam em conta a sua beleza, porque as desqualificam e preterem diante de outras mais belas, jovens e valiosas.

Ou não: por vezes, a dúvida masculina é mais profunda e repousa sobre o inatingível amor. Tem-se a bela, mas ela não supre a falta. De um jeito ou de outro, por excesso ou por insuficiência, a convivência com a mulher torna-se, assim, algo da ordem do intolerável, porque justamente ela lembra o « humano » no homem: a sua imperfeição. Por isso, coisa ou musa, ela precisa ser substituída ou simplesmente descartada. Perdem-se os anéis, ficam os dedos. Vão-se as mulheres, permanecem os homens. Morram as mulheres, vivam os homens.

Este é, pois, o final de uma crônica, cujo fim espero que o reinventemos, senão num final feliz, em algo que convide à reflexão e a menos alienação subjetiva e afetiva. Que a dignidade volte a inspirar as condutas e atitudes de homens e mulheres, por relações amorosas menos passionais e menos violentas. Que um « não », um « fora » ou mesmo « uma traição » não signifique o aniquilamento de si e nem consequentemente do outro, mas suscite pistas de autodesenvolvimento pessoal e conjugal. Por uma nova ética amorosa e práticas efetivamente libertárias, à altura da luta de feministas e mulheres vanguardistas, assim como de homens realmente novos, do passado e do presente.


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Mione Sales – é professora de Serviço Social (FSS/Uerj) e doutora em Sociologia/USP. Contato: mioneecia@hotmail.com

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Em tempo - Esta crônica conta com títulos extraídos das músicas « Ciúme de você » e « É meu, é meu, é meu » de Roberto Carlos.
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Links

http://www.youtube.com/watch?v=2qqN4cEpPCw
[« Como nossos pais », de Belchior, interpretado por Elis Regina]

http://www.youtube.com/watch?v=5anxwZuy6ss
[Homenagem ao poeta Maiakovski, cujo poema O amor inspirou a bela versão de Caetano Veloso, aqui na voz de Gal Costa]

http://www.youtube.com/watch?v=n8Ap9svAgPY
[« Ciúme de você », de R. Carlos]

http://www.youtube.com/watch?v=0WuX8XI6l30&feature=related
[« É meu, é meu, é meu » de R. Carlos]

http://www.youtube.com/watch?v=0WwuTXf8Vls
[« Mulher », de Geraldo Azevedo]

http://www.youtube.com/watch?v=TjTFU1jzuYw
["Mil perdões", de Chico Buarque]

Blogs e sites feministas

http://escrevalolaescreva.blogspot.com/

http://www.osezlefeminisme.fr/

http://blogueirasfeministas.com/2011/05/o-feminismo-de-cada-um-de-nos/

http://www.npns.fr/

http://www.mudgirls.ca/Site/photos.html

Outros

http://www.france-info.com/france-societe-2010-09-10-un-clip-contre-la-violence-conjugale-met-l-accent-sur-les-enfants-484213-9-12.html

http://www.20minutes.fr/article/378630/Monde-L-Espagne-en-campagne-contre-les-violences-conjugales.php

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