sábado, 17 de dezembro de 2011

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta

DIANE ARBUS e PAULA RÊGO -
HUMANAS, DEMASIADAMENTE HUMANAS
Fotografia e pintura numa sociedade saturada de imagens




Mione Sales*

      e
Maurílio Matos**
COLABORAÇÃO 


Aqui no Blog Mídia e Questão Social discutimos Comunicação e Cultura, com viés na política, na educação e também na arte. Profissionais da área social e jornalistas, interessamo-nos pela maneira como os sujeitos sociais, a mídia, grande e pequena, e nós próprios comunicamos nossos assuntos. Não basta, pois, apenas escrever. Não basta apenas fotografar. Não basta apenas divulgar. Não basta apenas difundir imagens. Deve haver atrás de cada gesto e iniciativa dessas uma reflexão, voltada a suscitar outras e a multiplicá-las, de acordo com os princípios que nos orientam.

Se pertencemos ao grande campo da esquerda, poderíamos estar todos de acordo, mas não. Temos diferenças justamente de olhar, de enfoque, de intensidade e também de radicalidade ao registrarmos nossas opiniões e manifestarmo-nos contra ou a favor de alguma medida governamental ou proposta dos diversos atores em disputa na sociedade civil. Podemos, por vezes, também estar de acordo no conteúdo, mas divergirmos na forma, o que pode parecer pouco, mas não é. Somos portadores e educadores de uma nova sensibilidade, ou se preferirmos de uma nova ética e utopia. Portanto, como dizemos e ilustramos integram batalhas discretas, embora fundamentais, de significado e de estratégia, travadas por vezes de maneira aberta e mais dura em outros campos da luta política.

Um dos debates polêmicos que integram historicamente os bastidores da comunicação e da política é o da instrumentalização da arte. Qual é o seu papel? Qual é o seu lugar? A arte se sobrepõe como linguagem à política, é dela autônoma ou deve servir apenas aos fins desta última? Há tantas opiniões a esse respeito como correntes artísticas e políticas, vocês devem imaginar. No entanto, nem por isso esse problema deve ser simplificado ou abstraído. Em tempos de luta mais aguerrida e revoluções, a relação entre arte e política é quase direta. Há belos registros históricos, inclusive no terreno da poesia e do teatro, em apoio à causa revolucionária, caso de Maiakovski e Bertolt Brecht. Noutros, belos cartazes que passado algum tempo mostraram-se como panfletos competentes de nossas ideologias, os quais sobreviveram inclusive a essas últimas. Lembramos especialmente de cartazes russos, cuja estética era, no fundo, mais interessante que a mensagem mecanicista que veiculavam a uma certa altura do estatismo stalinista. Nem o combalido realismo socialista foi capaz, porém, de apagar-lhe totalmente o brilho e a beleza.


 
Arte e questão social:
será possível escapar dos clichês?
Uma fotografia é um segredo de um segredo.
Quanto mais ela diz, menos se sabe ».
DIANE ARBUS

« Quanto mais somos precisos,
mais alcançamos o todo ».
LISETTE MODEL



Ao vivo ou virtualmente, tenho tido grandes conversas com amigos e companheiros de luta sobre a questão da arte. Há quem pense que devemos, sem meias palavras, chocar, surpreender o público. Outros pensam que a arte deve fazer pensar e portanto a mensagem nem sempre deve ser direta. Deve justamente requerer a participação de quem a vê para decifrá-la, entendê-la e senti-la. Tenho debatido ainda longamente com um amigo designer gráfico francês, Loïc Le Gall,  sobre como escapar das “armadilhas da facilidade » na hora de comunicar e criar. Diz ele com razão que temos uma responsabilidade em defender e lutar por aquilo que entendemos que deva ser a arte.






Certamente, vocês hão de ponderar, vivemos numa sociedade de massas em que a instrumentalização das imagens alcança níveis inimagináveis. As imagens consolidaram-se, é um fato, como mercadorias sob o capitalismo, que as vampiriza e esvazia de significados, produzindo e reproduzindo contradições políticas, culturais e subjetivas, como o narcisismo exacerbado e certo niilismo. O corpo é uma das principais vítimas desse comércio perverso, que tem que se ajustar a padrões rígidos, e vai se distanciando progressivamente do naturalmente belo, se quisermos resgatar duas noções importantes nesse debate: natureza e beleza. Acrescentaria o meu amigo, ainda, a questão da necessidade. Nem tudo o que comunicamos ou como comunicamos, tem ele razão, é necessário. Donde fechamos o círculo e voltamos ao começo dessa conversa: quem, o que, por que e como comunica?

Nesse debate, fico com Jacques Rancière, filósofo francês, que defende que a imagem deve nos convidar a pensar, logo exige uma abordagem e estratégias de comunicação singulares que suscitem e atuem na direção da emancipação do espectador. Associo à sua ideia uma outra, a da ética das imagens, sobretudo quando da necessidade de abordar o tema das imagens intoleráveis: reportagens de guerra, genocídios, chacinas, violência e outros, mas também bem mais próximo de nós: representações visuais da pobreza.

Esse apelo e responsabilidade com a qualidade e o teor dos conteúdos por ocasião da veiculação de imagens cabem tanto nos marcos de uma exposição individual ou coletiva, mas também no contexto do fotojornalismo e ilustração de revistas, cartazes, folders e outros materiais (audio)visuais. Como diria o nosso blog-camarada, o quixote Leandro Rocha, não basta apenas a liberdade de expressão. Esta deve primar por alguns parâmetros, o que é bem diferente da censura. Não operamos, portanto, uma cisão entre o ético e o estético.

Neste debate, o humor constitui, porém, uma bela exceção – não em matéria de qualidade, bem entendido! -, mas porque é um rebelde nato. De características em geral ateias, libertárias e suprapartidárias, ele ataca praticamente a todos os que se puserem no seu caminho. Logo, é impensável opor-lhe qualquer tipo de amarras. Ao mesmo tempo, o riso, a ironia, o bufônico e o carnavalesco situam-se no âmbito de uma lógica que é a do exagero e do surreal. Ninguém é obrigado a acreditar. O objetivo principal é a crítica e o divertimento. Não obstante, recentemente, tem aumentado a quantidade de protestos a artistas e peças de teatro, quando a religião – as mais diversas – é objeto de ataque. O jornal Le Monde realizou uma excelente matéria a esse respeito recentemente (ver link abaixo).

Mas voltemos ao tema que mais de perto nos interessa: como escapar aos clichês sobre a questão social? Como conseguir comunicar quando tudo parece nesse terreno já ter sido dito? Trafegamos num espaço de imagens sociais saturadas? E nesse caso, como fugir à tentação do sensacionalismo que habita quase que permanentemente os grandes meios de comunicação? Um exemplo concreto do que qualifico como excesso sensacionalista foi-me apresentado pela fotógrafa e também designer gráfica carioca, Márcia Carnaval, em suas reflexões sobre imagem e cultura. Trata-se de uma matéria de capa da revista Times, com uma afegã sem nariz. Carnaval publicou recentemente um artigo sobre o assunto, apoiada em Georges Bataille. A questão é: em que o mundo e os carecimentos humanos se enriquecem a partir da visualização de tal imagem? Nem sempre a melhor foto, assim, ao nosso ver, é aquela que deve vir em primeira página. Ela pode ser muito boa do ponto de vista técnico, mas nem sempre o será do ponto de vista ético e educativo. Fotógrafos, jornalistas e profissionais da área social podem se ver, assim, momentanemente em lados opostos.

Como resguardar, portanto, a dimensão histórica dos fatos e sua relevância social e política, por meio da publicização, logo via registro fotográfico e audiovisual, sem que isso intensifique a espiral sensacionalista e aprofunde ainda mais a erosão da esperança? Que tipo de representações queremos fortalecer? Se, como dizem alguns, há sempre uma dimensão subjetiva em nossas escolhas profissionais, literárias, artísticas, ou seja, o real é e pode ser também em alguma medida como o tingimos ou reinventamos. Logo, podemos, desde já, acenar com práticas culturais e uma perspectiva comunicativa, que sejam, a um só tempo, informativas, mas também poéticas e utópicas, com vistas ao outro mundo possível que aspiramos.

Alargar consciências pressupõe, sem dúvida, um cuidado com o que mostramos e como o mostramos. Dar a ver o mundo pela arte requer em geral projetos. Para tanto, quero ilustrar essa conversa com o trabalho de duas mulheres, ambas com distintos, embora igualmente densos, projetos de captação de momentos da vida de homens e mulheres. Uma é a fotógrafa americana Diane Arbus. A outra é a artista plástica portuguesa Paula Rêgo. A ideia é mostrar em que elas acrescentaram ao mundo, em matéria de crítica e humanismo, a partir de seu olhar; em que medida contribuíram para desalienar nossas mentes, ainda que por momentos tenham nos desafiado a ver o real e as pessoas diferentemente, isto é, por ângulos tão ásperos quanto inéditos.

O professor e assistente social Maurílio Matos, que me apresentou a artista Paula Rêgo, é nosso convidado e contribui com um pequeno texto, em que fala da importância da obra dessa artista na interrelação com temas candentes ligados à questão social.



Diane Arbus: a estranheza é uma forma de beleza



Passeio de domingo no Brooklin (1966)


« A primeira vez que eu vi Teresa
A cara dela parecia uma perna… »
MANUEL BANDEIRA


Está em cartaz no Museu Jeu de Paume (Paris), uma excelente exposição sobre a arte fotográfica contemporânea de Diane Arbus (1923-1971). É a sua primeira grande retrospectiva na França. Olhos mais atentos, sem dúvida, vão se dar conta de já terem, em algum momento, pousado, ainda que rapidamente, sobre algum de seus principais trabalhos. Fui apresentada a ela, insisto, primeiramente pelas mãos de Jacques Rancière, num de seus livros, em que propunha uma leitura sobre a dimensão reflexiva das imagens fotográficas.

A primeira vista, as fotos de Arbus parecem fruto do puro investimento estético, pois, clicadas em preto e branco, transbordam bom gosto. Se olhadas em conjunto, porém, no quadro de uma exposição, logo nos damos conta de que a sensação de desvelo estético está ligada ao momento histórico em que foram tiradas: entre os anos 50 e começo dos anos 70. Aquelas décadas nos Estados Unidos fizeram história em matéria de vestuário e novos hábitos das classes médias urbanas, com seus padrões de consumo de massa.


Duas jovens em trajes de banho iguais (1967)



Diane Arbus, poder-se-ia dizer, segue ao pé da letra a filosofia de Caetano Veloso, quando diz que « de perto ninguém é normal ». Sua obra caracteriza-se de modo geral por retratos de pessoas, que ela vai flagrando nas ruas e bairros americanos, assim como em comunidades marginais e símbolos da contracultura: profissionais de circo, pessoas com transtornos mentais, grupos de nudistas, entre outros. O foco está no contraste, tendo como pressuposto uma ruptura com os lugares comuns em matéria de expectativas imagéticas americanas. Empenhada em dar visibilidade às mitologias do cotidiano, quase sempre algum detalhe mais bizarro ressalta nos rostos fotografados. Há, pois, algo na forma dos retratados que instaura um desconforto naquele que vê: um olhar, uma boca, um nariz, para não falar da disposição dos corpos. Tudo comunica e, ao mesmo tempo, provoca certo mal-estar, que no fundo não procede da imagem vista propriamente dita, mas da situação ou estado da alma da(s) pessoa(s) fotografadas. São silêncios entre casais, corpos nus displicente e naturalmente desajeitados, artistas travestis, a solidão das pessoas, entre outros. Como diz Judith Butler, a câmera fotográfica de Arbus não participa do jogo voyeurista e invasivo dos corpos em voga na sociedade contemporânea. Suas fotos mostram inclusive uma relação de tensão e resistência à captura da imagem : « ela(s) nos permite(m) um modo de compreender como o corpo algumas vezes só se torna resolvido em sua impermeabilidade, objetividade, superfície e solidão ». [she gives us a way of understanding how the body only sometimes becomes resolved into its impermeability, its objectness, its surface, and its solitude].


Homem de bob (1966)


Libertária, ousada e avançada para o seu tempo, as suas inúmeras fotos de homossexuais presentes no mundo do circo e do espetáculo servem de termômetro e indicador do seu vanguardismo cultural. Eles foram clicados em geral em camarins, acentuando ainda mais a perturbadora e assaz enevoada passagem entre a identidade sexual desejada e o aspecto camaleônico de todo artista, ao se maquiar e se fantasiar.

Agora o ponto alto da exposição é, ao meu ver, a série que ela dedicou a algumas mulheres e adolescentes, atingidas por síndrome de Down, clicados num contexto de uma colônia de férias no campo. Tal é o seu sentimento de respeito pelas pessoas que Arbus consegue uma verdadeira façanha: a uma determinada altura, ela  inverte a lógica do senso comum. Depois de vermos por tanto tempo pessoas ditas normais com suas estranhezas e tristezas - embora, como diz o poeta Vinícius de Moraes, com « uma esperança de um dia não ser mais  triste, não » -, ao olharmos as fotos do grupo de pacientes com deficiências intelectuais, vemo-las mais alegres e festivas que doentes. Perturbadora essa linha entre a dita « normalidade » e a   « anormalidade ».





A foto mais surpreendente e bela, na exposição, é justamente a de uma adolescente com síndrome de Down num campo a sorrir e a segurar uma flor. Tudo nela sugere graça, feminilidade e beleza desabrochando, não fosse o nosso olho treinado constatar paralelamente que ela apresenta o dito transtorno. Mesmo se tudo isso é revestido de intencionalidade, pois há um projeto, uma tese em desenvolvimento no momento dos registros fotográficos, há também a interferência do acaso e da beleza flagrada em sua espontaneidade. A condição humana é exibida assim em suas múltiplas e desconcertantes faces – « personagens singulares que aparecem como metáforas, autores e heróis de um sonho real » (D.A.) -, as quais nem mesmo o glamour do show business é capaz de ocultar.


O corpo tem muitos cotovelos
ou mulheres, prazer e dor, segundo Paula Rêgo


O amor (1995)

Se a obra de Diane Arbus transmite uma certa frieza e mostra as pessoas como que aprisionadas em uma fixidez melancólica, os quadros, desenhos e esculturas de Paula Rêgo (1935-…), mesmo tratando de temas humanos e sociais difíceis, é puro calor e cor. Como diria o poeta Fernando Pessoa, « eu sou à esquerda de quem entra ». Também essas artistas o são. Mostram a vida por seus recantos menos evidentes. Diane Arbus fotografa as pessoas na rua, ao ar livre ou sob a mira de luzes nos camarins. Paula Rêgo explora outra ordem da privacidade, menos a tristeza e mais a dor, menos as paixões e mais as taras humanas, menos a liberdade e mais a exposição à violência. Tudo isso se passa, porém, em ambientes fechados: casas, quartos, colégios e orfanatos.


Anjo (1998)


Na maior parte das suas telas e desenhos, ela retrata as contradições humanas, seu desnorteamento frente à falta de soluções, mas também o desejo concupiscente de pessoas idosas, a androginia que desmistifica anjos. O desejo está lá. O corpo está lá. Inegáveis, por mais pesadelos que se sofra e crimes que se cometa por eles.

Trata-se de uma leitura crítica, que propõe que aspectos impiedosos do privado sejam objeto de uma apreciação social e pública, mas ao mesmo tempo esses quadros e instalações não julgam. Deixam esse trabalho para o espectador, que, desavisado, pode muito bem imaginar meras cenas íntimas familiares e entre homens e mulheres. Paula Rêgo, porém, juntamente com as pesquisas mais recentes sobre violência doméstica e sexual, alerta a todos para o fato de que o perigo, por vezes, mora literalmente ao lado. Casas de família são também alcovas e nem mesmo a diferença de gerações basta para proteger crianças e mulheres. Ela não opera nenhum julgamento direto, mas mostra, graças ao belo traço de seus pincéis e sem nenhum disfarce, a vida como ela é. Nos anos 90, seu trabalho vai adquirir força e expressividade, veiculando doravante temas relativos à complexidade da natureza humana, que vão particularizar o seu estilo e consagrar o seu nome internacionalmente.

Sua obra dialoga com livros de Eça de Queiroz e Júlio Ribeiro, autores naturalistas respectivamente de Portugal e Brasil. A atmosfera naturalista está lá na denúncia, mas ao mesmo tempo Paula Rêgo não deixa de prover sua obra com a beleza plástica. O onírico mostra-se numa linguagem pictórica que remete às fábulas, com presença lendária de animais e faunos. Ora percebe-se a influência das « Pinturas Negras » de Goya em suas gravuras. Ora seus quadros coloridos fazem-nos lembrar de Gauguin: nele a leveza taitiana, nela a densidade portuguesa. As casas e famílias, ao que parece, podem ser território de outros tipos de colonização e dominação.



Entre mulheres (1997)


Para concluir essa breve introdução à arte de Paula Rêgo, gostaria de sugerir aos blog-leitores a visita ao seu museu em Cascais, o belo e moderno espaço Casa das Histórias Paula Rêgo, inaugurado em 2009. Pela obra, pela arquitetura, pelo verde do lugar e também pela orla que nos conduz e nos devolve à Lisboa, vale a ida até lá. Depois de Vieira da Silva, Paula Rêgo é uma das artistas plásticas portuguesas que conquista notoriedade internacional. A semelhança não acaba aí. Seu marido, Victor Willing, era igualmente pintor como o de Vieira da Silva, Arpad Szenes. O mais curioso é que a obra dessas mulheres é dotada de uma força que sobrepuja largamente a delicadeza dos homens artistas que as acompanharam pela vida.

Mais que isso, Paula Rêgo é autora de uma das obras mais eróticas e criativas que há tempos não via: a gravura « Rapariga engolindo um pássaro » (1996).

Com a palavra agora, Maurílio Matos, que nos apresenta a obra de Paula Rêgo, por um ângulo raro e assaz reflexivo do ponto de vista do humano e do feminino, a partir de um extrato de seu livro A criminalização do aborto em questão, publicado pela editora Almedina em 2010. A arte vem somar, assim, com os versos da canção brasileira, O Bêbado e o Equilibrista: « uma dor assim pungente não há de ser inutilmente ».


Série “Sem título”, de Paula Rego




Maurílio Matos**


A artista lusitana Paula Rego, mesmo radicada em Londres, possui uma relação visceral com seu país. Seus quadros tratam de valores e assuntos universais a partir da particularidade dos temas em Portugal. Paula Rego também junta a isso sua preocupação, ou “necessidade”, de abordar as mulheres e suas questões, numa perspectiva de questionamento do papel que tradicionalmente lhes cabe.

As mulheres representadas nos quadros de Paula Rego permanecem dentro de casa, mas a pintora transforma a casa num autêntico campo de batalha (Cabral e Rodrigues, 2009:05).

Após o plebiscito de 1998, em Portugal, sobre a descriminalização do aborto – que teve um grande índice de abstenção e no qual o “não” saiu vitorioso – a artista pintou uma série de quadros sobre o aborto, expostos em 1999. Sobre essa série de quadros, intitulada “Sem título”, já disse a artista:

Arte é arte, mas nem sempre se vê o que se passa nela. Um quadro não é apenas cores e formas, mas história. Essa série surgiu da minha indignação. Fiquei triste com o que se passou em torno da questão do aborto. Houve vergonha. As pessoas não foram votar por desleixo. A Assembléia tinha tido a palavra final, nem sequer havia que realizar o referendo. Há anos, em Portugal, é evidente o sofrimento das mulheres: as ricas vão abortar ao estrangeiro, as pobres não podem. É inacreditável considerar criminosas mulheres que praticam aborto. Isto faz-me lembrar coisas do passado (Diário de Notícias, 23/01/2008).

A série de quadros retrata mulheres sozinhas vivendo as agruras de um aborto clandestino. São mulheres jovens e maduras que passam extrema força nos seus olhares. Concordamos com Macedo (2001) que essa série foi um gesto da artista de tornar público aquilo que se quer privado e silenciado, ou melhor, “as vergonhas privadas”.

Dessa série, o quadro mais divulgado é o “Sem título número 08”, que retrata uma mulher sentada em uma cama com uma toalha em baixo de si, uma tigela ao seu lado e há, também, uma bacia abaixo da cama. Nesse quadro a mulher nos olha diretamente. Inevitavelmente nos inquire sobre a necessidade de passar por aquilo. Esse olhar é de dor, mas também de determinação.





Essas mulheres, retratadas por Paula Rego, chamam atenção para o sofrimento de um aborto clandestino, mas não há penúria nos seus rostos. Há, como diz a própria artista, em algumas mulheres retratadas “uma expressão de desafio”, uma vez que elas “tomam conta do seu próprio destino”. Afinal, como disse a artista nesta mesma entrevista:

As mulheres que abortam sofrem, mas o espírito pode sobreviver à dor. Não suporto a idéia de culpabilização em relação ao acto. Já basta o que cada uma sofre por ter de o praticar (Diário de Notícias, 23/01/2008).

A série de quadros de Paula Rego aqui tratada é bela – como só uma obra de arte pode ser – mas também educativa, pois nos possibilita refletir sobre a importância da descriminalização do aborto. Vale a pena ser vista e refletida.

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Mione Salesé doutora em Sociologia (USP), professora da FSS/Uerj e tem M1 em Literatura Comparada (Paris 3 Sorbonne).

Maurílio Matos – é professor Doutor da Faculdade de Serviço Social da UERJ e assistente social do SUS / Sistema Único de Saúde em Duque de Caxias.
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Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Diane Arbus: Surface Tensions. Artforum, fevereiro 2004. Disponível em: http://www.americansuburbx.com/2010/11/theory-surface-tensions-judith-butler.html
CARNAVAL, Marcia. A face humana em Georges Bataille e a afegã sem nariz da 'Time Magazine’. Comunicação oral durante o 18° Encontro  PPGAV /UFRJ, novembro 2011.
GATTINONI, Christian e VIGOUROUX, Yannick. La Photographie (1839-1960). Paris, Editions Scala, 2001.
LAROUSSE. Dictionnaire de la photo. Paris, Larousse, 1966.
MATOS, Maurílio. Aborto: População não quer ver a mulher presa por isso. Entrevista 5 dedos de prosa, Blog Mídia e Questão Social, 14/10/2010. Pode ser consultado no link:
http://midiaequestaosocial.blogspot.com/2010/10/cinco-dedos-de-prosa.html
_____.  A criminalização do aborto em questão. Lisboa, Almedina, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris, La Fabrique, 2008.
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LINKS

[Quinze imagens que chocaram Deus, artigo no jornal Le Monde]

[O Bêbado e o Equilibrista, Elis Regina]

5 comentários:

  1. Mione, gostei muito de ler esta análise artística sob auréola sociológica (ou será que foi análise sociológica com inclinação artística?) Levantou questões que, apesar de não serem questões conscientes, percebi estarem sempre lá. Obrigada! Bom Natal e beijos, Sheila.

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  2. Sheila, que bela supresa e visita! O seu olhar como profissional experiente, sensível, embora já desencantada com a Publicidade muito fortalece o meu esforço e dos meus colegas do Blog M&QS, em dialogarmos com a arte e com a cultura, com vistas a uma troca mais profícua e aprendizados mútuos. Feliz 2012! Grande abraço. Mione*

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  3. Ei Mione,enriquecedora e oportuna. Adorei essa conversa sobre ética e estética. Essa parceria entre Arbus,Rêgo e piscianos é de tirar o fôlego. Impactos pertubadores como diria Susan Sontag.Aproveito para parabenizá-la pelo trabalho na Agenda 2012 do Assistente Social. Igualmente sensível.Fiquei bem impressionada com a capacidade de transposição. Como você mesma diz: quando tudo parece já ter sido dito. Um forte abraço. Amei a parceria.

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  4. Kênia,
    Não sei se você reparou mas a ilustração que abre esse artigo é uma « arte-pixação » num carro em Paris. Cliquei essa imagem logo depois que você passou por aqui. Ia enviar, mas acabei me enrolando. E não é que tem o seu nome grafitado ali? Fica de presente pelo carinho, pela interlocução e por esse doutorado em comunicação que você vai começar agora! Pois é... Adorei compartilhar a ideia dessa matéria com o nosso querido Maurilio! Que bom que ele topou! Grande abraço.

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