domingo, 23 de dezembro de 2012

Editoria Estranha Semelhança com a Utopia

É possível uma sociedade sem prisões?



Jefferson Lee de Souza Ruiz*

Eis uma pergunta que, há tempos, não quer calar em minhas reflexões. Tenho acompanhado debates diversos acerca de como lidamos com o tema.

Num deles, em ótima contribuição, o professor Ignácio Cano, da UERJ, provocou os presentes a um debate a pensar se realmente somos contra uma "sociedade penal" (ou um "Estado penal"). Pena, dizia ele, faz parte de nossas vidas. Pensemos em como agimos quando uma criança "faz birra". Ou quando um aluno não produz o necessário em um semestre, ou mesmo faz "cópia e colagem" na internet para os trabalhos que entrega a seus professores. Ou, ainda, quando alguém fere o código de ética de uma determinada profissão, trazendo prejuízos a quem recebe os serviços prestados por aquele profissional. Podemos dar outros nomes, mas definimos "penas" a serem impostas ou cumpridas por estas pessoas.

Mas há uma distância enorme entre pena e prisão. Parece-me que esta, inequivocamente, é uma associação muito perversa, que não contribui para pensarmos o que há por detrás do discurso que alimenta a ampliação do sistema prisional mundo afora. No mundo todo tem crescido a defesa de um "Estado prisional" - já denunciado por diversos militantes e pesquisadores, como o colega Marcelo Freixo, com dados a respeito que chegaram ao filme Tropa de Elite 2.


Nem todos sabem, mas o Brasil já conta com a quarta população carcerária do mundo. Ficamos atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Pesquisas diversas demonstram que quem entra na prisão por razões banais, sai (quando sai) de lá, em geral, sem quaisquer perspectivas de retomar suas vidas.

Se a defesa de um "Estado prisional" vem de pessoas conservadoras ou reacionárias, é mais fácil compreendê-la: trata-se de uma determinada perspectiva de organização da sociedade, que defende direitos desiguais entre as pessoas e que, infelizmente, ainda está viva e atuante no século XXI.

Se ela vem do que costumamos chamar (autoritária e genericamente) de "senso comum", também é possível apreender que trata-se de efeitos do intenso processo ideológico existente na atualidade.

Mas me incomodo muito quando esta defesa está presente nos discursos de militantes revolucionários, de movimentos populares e sociais combativos, em políticas sociais e legislações que defendemos. Prisão como alternativa para questões que sabemos terem por pano de fundo a intensa desigualdade social existente na sociedade de classes em que vivemos é algo que não combina com a sociedade libertária que imaginamos e anunciamos para o futuro.

Neste sentido, recomendo a leitura do excelente artigo de Viviane Tavares, reproduzido abaixo. Ele saiu publicado no jornal Brasil de Fato, edição de 15 a 21/11/2012, página 5. Corajoso e provocativo, ouve distintas opiniões para nos abrir os olhos quanto à reforma do código penal brasileiro, cujo debate está sendo feito em espaços pouco participativos e cujos resultados podem nos ser absolutamente deletérios para o futuro.

Imaginar uma sociedade sem prisões nos é difícil, mas guarda uma estranha semelhança com a utopia. Que tal nos provocarmos a pensar na hipótese?

Observação:

A reprodução de matérias do Brasil de Fato, citada a fonte, é autorizada pelo jornal - o que vimos fazendo recentemente no Blog "Mídia e questão social".

Isso não deve isentar os que defendem a democratização da comunicação de apoiar, inclusive financeiramente, experiências de mídia alternativa. Contribua. Acesse www.brasildefato.com.br

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*Jefferson Lee de Souza Ruiz é assistente social e mestre em Serviço Social. Atua como assessor político do CRESS-RJ e é professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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Reformar é preciso?
Viviane Tavares - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio /Fiocruz

Temas relacionados à saúde estão entre os mais polêmicos no projeto da reforma do código penal.


A reforma do código penal tem tomado as páginas da grande mídia e as discussões acadêmicas do campo jurídico. Com avanços e retrocessos, o PLS 346/2012 , o projeto de lei que propõe a reforma do código penal ainda não conseguiu agradar nem aos conservadores e muito menos aos progressistas. Com mais de 200 emendas recebidas até esta primeira semana de novembro, o projeto traz assuntos novos como a eutanásia, o bullying e o crime contra animais, e, ainda, modifica assuntos já existentes como o aborto e o uso de drogas, estes últimos considerados os mais polêmicos.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e representante do Instituto de Advogados do Brasil (IAB), Sergio Chastinet, a ideia que está sendo passada pela reforma do código penal é errônea. "É quase uma propaganda enganosa. Você tem ilhas de ideias progressistas em um oceano de ideias punitivas. Com este projeto, vai aumentar a seletividade do sistema penal. Punir é mais fácil, mais barato e dá mais voto", explica. O professor destaca a questão do aumento da pena máxima de prisão para 40 anos, o fim do livramento condicional e o rigor carcerário como os pontos mais críticos.

Sergio lembra também que a proposta do novo código penal tem seguido um trâmite mais rápido do que o de costume para um projeto de tamanha importância para a legislação brasileira. O anteprojeto foi preparado em junho deste ano, transformado em projeto e entregue em agosto para Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que considerou com uma das prioridades pós-recesso do meio do ano. "A academia e instituições como o IAB estranharam o fato do projeto ter sido realizado tão rápido, passando por cima de alguns trâmites legislativos. Não se abriu para discussão nos meios acadêmicos nem nos chamados operadores do direito (advogados, promotores e juízes). Ele aposta muito no simbolismo da punição. Você vê o quanto o projeto é insensato: ele pune com rigor maior a omissão de socorro a animais do que a omissão de socorro a crianças", critica Sérgio, : "O nosso código pode estar desatualizado em alguns pontos por não atender determinadas ideais mais libertárias, mas ele é bem estruturado, não precisa de uma reforma. Ele pode ser atualizado como aconteceu em 1984, 2005 e 2009 ".

A posição de Sérgio não é isolada no campo jurídico. Numa carta em que justifica sua saída da comissão de reforma do código, o jurista Renné Dotti critica o método de trabalho e a urgência com que o processo tem sido conduzido. "As reações ao açodamento com que tramitou o anteprojeto, automaticamente convertido em projeto sem a ampla e indispensável contribuição de estudiosos e profissionais da ciência penal e da sociedade em geral, estão se materializando nas mais diversas formas de crítica acadêmica e profissional", afirma o jurista em sua carta.

Aborto

O aborto, considerado um dos grandes avanços deste projeto, também é alvo de críticas. Na nova redação, no artigo 128, mulheres que não tenham condições psicológicas de arcar com a maternidade constatadas por médico ou psicólogo e que optem por interromper a gestação, podem realizar o aborto. De acordo com a doutora em antropologia e professora da Universidade de Brasília (UnB) Débora Diniz, os assuntos relacionados à saúde são considerados mais polêmicos porque não são tratados com a laicidade que deveria ter o Estado. Prova disso é o número de emendas às temáticas relacionadas à saúde, que chegam a quase 1/3 do total. "O tema tem uma pauta religiosa em um espaço democrático. Não estamos defendendo um Estado ateu, mas que reconheça a pluralidade de crenças e necessidades diversas. As mulheres religiosas vão estar protegidas, caso não queiram realizar o aborto. Por outro lado, o assunto é perigoso em tempos de eleição para o legislador assumir como pauta, porque pode trazer problemas para ele, o que mostra a grande imaturidade política dos tempos de hoje", explica.

Ela lembra ainda que esta questão deve ser considerada como prioritária por já ser uma realidade. "A proposta de descriminalização do aborto em situações específicas, responde a uma mudança do país nestes 80 anos desde a criação do código em 1940. Nós conhecemos o que tem de mais seguro e eficiente e que uma a cada cinco mulheres brasileiras já fez um aborto. Mas, se imaginarmos que este aborto é realizado em condições clandestinas e inseguras, proibir é não querer ver a realidade. Temos um contingente de condições precárias de saúde que não só colocam a vida das mulheres em risco mas também acabam demandando outros tipos de tratamentos para o SUS, que poderiam ser poupados se o aborto fosse descriminalizado e acessível às mulheres", explica.
Drogas

As drogas são ainda mais repletas de controvérsia. De um lado, a lei descriminaliza o usuário, e, de outro, mantém a pena de quem comercializa. No novo código, no artigo 212, não é criminalizado aquele que, desde que seja para seu consumo pessoal, adquire, guarda, tem em depósito ou traz consigo, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação das drogas. Já a pena para o tráfico de drogas mantém a redação da lei 11343/06 , que Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). "A temática das drogas teve um avanço com a liberação do porte, mas um recrudescimento punitivo para o traficante. Isso é hipocrisia. Uma política de drogas séria deveria reconduzir o problema das drogas para a questão de saúde e não só criminal", comenta Sérgio Chastinet.

Para Sergio Alarcon, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e autor do livro ‘Álcool e Outras Drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo', lançado pela Editora Fiocruz em agosto deste ano, a questão da droga deve ser encarada por outras esferas. "Esta mudança não trará de fato a descriminalização. Embora a proposta do novo código procure determinar critérios mais objetivos para diferenciar usuários de traficantes, estabelecendo a natureza e quantidade da substância apreendida, estes critérios não são absolutos. Além da quantidade, o projeto fala também do local, condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes. Ora, há margem para abusos, dependendo da perspectiva utilizada pelo avaliador (autoridade policial ou juiz). Ou seja, nada diferente do que é hoje em dia", afirma Sérgio. "Acho que a manutenção da guerra às drogas é em si um produtor de ilegalidades, e essa produção não deixará, por mais que se pretenda amenizar a punição aos usuários, de se criminalizar a pobreza. Essa criminalização é a responsável pelo Brasil ter uma das maiores populações carcerárias do planeta. Sem contar no verdadeiro genocídio que a guerra produz, matando 15 mil jovens por ano, na maioria negros e pobres", analisa.
Outras questões da saúde

Abandono de incapaz e maus-tratos também constam em ambos os códigos penais, mas, no mais recente a pena é mais rigorosa, chegando a quatro e cinco anos, respectivamente, e podendo somar-se às penas de lesão e de homicídio dependendo da consequência do ato. Para Daniel Groisman, professor e coordenador do curso de formação de cuidadores de idosos oferecido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o aumento da pena não resolve problemas que devem ser discutidos no âmbito social. "Quando o estatuto do idoso trouxe esta questão em 2003 foi interessante porque deu visibilidade para o tema, mas não adianta aumentar o tamanho das penas, é preciso atacar as causas. É necessário pensar em uma política preventiva e não punitiva de culpabilização da família, que muitas vezes é vítima de tantas outras injustiças sociais", comenta.

A pena também aumentou em casos como causar epidemia mediante propagação de microorganismos; a exposição da vida, da saúde ou integridade física de alguém a perigo direto e iminente; a exigência do cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia para o atendimento médico-hospitalar emergencial, que já tinha atualizada no código penal com a lei 12653 neste ano. Entre outras novidades e mudanças relacionadas à saúde estão a inserção da pena para quem cometer a esterilização forçada, o estupro de vulnerável, incluindo a pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental, e a eutanásia, excluindo a ilicitude quando o agente deixar de fazer o uso de meios artificiais em casos de doenças irreversíveis atestadas por dois médicos e com consentimento da família.

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