sexta-feira, 10 de maio de 2013

Editoria Volta do Mundo, Mundo dá Volta


Elas são muitas mulheres
O ACIRRAMENTO DA VIOLÊNCIA MACHISTA E O FIM DO SUPERHOMEM




“O problema são problemas demais
Se não correr atrás da maneira certa de solucionar.”
CHICO SCIENCE


Mione Sales*


A violência contra a mulher, por sua amplitude e gravidade, exige a produção de muitos estudos e pesquisas, e levantamento de dados, de forma a mapeá-la e a contribuir com a formulação de políticas públicas. Como a violência é um fenômeno relacional, a sua decifração requer também a reflexão sobre quem a comete e por que a comete. As hipóteses são muitas. No entanto, ponho-me a refletir, pelo ângulo cultural e social, acerca de um tema candente: a violência do estupro (rape, em inglês, e viol, em francês), especificamente aquela do agressor desconhecido em relação a uma vítima, dele também desconhecida. Sabe-se, contudo, que uma parte significativa dessas agressões contra as mulheres é cometida por um homem conhecido da vítima.

O acaso, porém, muitas vezes, promove encontros infelizes. O ônibus atrasou, perdeu-se o trem, desencontrou-se do amigo, andava-se um tanto quanto distraída, talvez pensando nos problemas do coração ou do bolso, ante a ameaça iminente de perda do emprego ou da chance ainda não vingada de um primeiro trabalho, resolveu-se pegar um atalho por uma rua um pouco mais deserta, saiu-se da reunião para ir ao banheiro do campus universitário, tinha que ir embora logo, pois senão ia levar bronca da mãe, entre outros. O que, na maioria das vezes, constitui um risco é a combinação explosiva de um horário avançado mais um local ermo, e sobretudo a situação da mulher estar sozinha na rua, no carro, no estacionamento ou a fazer jogging, com os seus fones de ouvido. Se a música ajuda a dar ritmo e coragem de se manter em forma, as mulheres deixam de contar com o auxílio precioso de sinais, como o barulho dos passos de aproximação do agressor.

A gratuidade desta violência aleatória, cuja vítima poderia ser qualquer mulher que atravessasse o caminho do agressor choca as pessoas em geral e sobretudo a nós,  feministas. Este tipo de violência, no entanto, abate-se também sobre outras vítimas da violência banalizada e homófoba da sociedade, com o estupro e por vezes o assassinato também de homossexuais, travestis ou simplesmente jovens gays. Se nem sempre estão a portar vestimentas que façam apelo ao desejo masculino – velho argumento que faz parte da cantilena conservadora que tenta justificar o porquê deste tipo de agressão -, o que chama atenção em ambas formas de violência é o componente misógino nelas inscrito. A feminilidade, portanto, e tudo a ela relacionado parece consistir numa potencial forma de risco.





Tenho uma amiga brasileira na França que participa de uma pesquisa nacional sobre o estupro, em particular associado ao incesto, e com ela travo longas conversas sobre o absurdo deste tipo de violência. Impressiona-nos, por exemplo, a ocorrência do estupro desde épocas imemoriais, registrado, inclusive, no imaginário coletivo por meio de obras de arte. Várias pinturas clássicas reportam-se, em alusão a experiências reais ou às fantasias eróticas de todos os tempos, não apenas ao rapto, mas ao estupro de jovens mulheres. Diante desta constatação, há duas atitudes possíveis: deduzir que se trata de um fenômeno atávico e simplesmente se conformar ante as suas manifestações ainda na contemporaneidade, postas sob a lente de aumento da cobertura midiática; ou ao contrário se indignar e questionar a reprodução deste tipo de agressão « supostamente » instintiva e invocar os componentes civilizatórios e humanistas que desenvolvemos ao cabo de séculos e que nos permitem fazer escolhas sexuais e amorosas calcadas na liberdade e na reciprocidade.

ETHOS SEXUAL MASCULINO: entre o hedonismo e a destruição do outro

A referência à história é, pois, fundamental no sentido de contextualizar as atuais  expressões da violência cometida contra as mulheres. Num primeiro momento, faz-se necessário pensar que não se pode recorrer abstratamente à justificação de ações imorais e crimes hoje com base em representações mitológicas do desejo e poder masculinos. O que parece coincidir entre as duas situações e épocas é a ausência de barreiras à interdição deste tipo de violência. É sabido, por exemplo, que houve épocas em que se teve uma espécie de desequilíbrio demográfico, com uma maior quantidade de homens em relação às mulheres, o que induzia ao rapto de mulheres dos clãs vizinhos. Este quadro reproduziu-se de forma intermitente e por circunstâncias diversas em várias sociedades e culturas ao longo da história.  Esta menção é digna de nota, pois talvez seja ela mesma indicativa da violência cometida contra as mulheres de outrora, na medida em que se sabe que as mulheres, sendo mais sedentárias que os homens, deveriam em tese viver mais e serem mais numerosas, posto que eram estes últimos que partiam para a guerra e para a caça. Num tal cenário de escassez do feminino, as mulheres, qual presas masculinas, eram igualmente caçadas, em total associação e redução à sua condição animal e biológica de fêmea, tombando nas mãos do caçador, isto é, do mais forte.




Vê-se que este fetiche da mulher-caça e do homem-caçador subsiste no imaginário contemporâneo. Foi com o intuito de regular este tipo de relações sociais e toda uma série de comportamentos guiados exclusivamente pelos instintos que se ergueram e fortaleceram historicamente a reflexão e a práxis éticas. O homem e a mulher são o que comem, o que fazem, o que leem, o que bebem. Ou seja, a noção de moderação veio dosar o absoluto, que é a marca do excesso e, por conseguinte, muitas vezes da morte. O debate sobre os pecados capitais, para além do viés religioso punitivo, participa deste esforço coletivo de recuo das barreiras naturais. Este, no fundo, é uma reflexão e uma tentativa de regulação moral frente aos apetites e instintos individuais ou privados (gula, cobiça, preguiça, avareza, luxúria, ira e soberba), com vistas à construção de um quadro societário em que o comedimento de cada um, além de ser rico de significado, humaniza os indivíduos, porque permite que eles se elevem acima do seu próprio ser natural / animal e exercitem a alteridade. Não se deixa de ser um ser biológico, com suas respectivas necessidades básicas, mas a forma de saciá-las é que vai constituir a riqueza das suas escolhas, dizer da sua singularidade, podendo, a partir disso, configurar uma atitude / ação valiosa e, como tal, digna de admiração e capaz de produzir o encantamento / a sedução de homens e mulheres.

Dito de outro modo, um corpo másculo, jovem e saudável, pode no âmbito das necessidades naturais do desejo feminino ou homossexual masculino representar abstratamente um ser humano / homem com potencial elevado para ser desejado, escolhido e amado, e até mesmo invejado por outros homens. Essas  qualidades naturais esvaem-se instantaneamente, porém, quando se lê, no jornal, em matéria recente,  ao lado da foto deste corpo malhado, que este mesmo homem, em tese « desejável », assassinou uma mulher. Mais que isso: por motivo torpe e banal, além de cometer um latrocínio, incendiou o corpo da vítima. Vê-se que o caso hipermidiatizado do bárbaro assassinato de Eliza Salmudio encontra eco em novas agressões feitas às mulheres, com ou sem envolvimento amoroso, em solução típica – a destruição do corpo da vítima - do acerto de contas efetuado por traficantes nas principais favelas brasileiras.

Não basta, portanto, ser sexy. Tem-se, homens e mulheres, que ser humanos e procurar encontrar respostas não impulsivas nem excessivas às necessidades naturais e materiais: fome, sede, sono e desejo sexual.

TENTAÇÃO PERTO DOS OLHOS, MAS LONGE DO BOLSO E DA CAMA - imaginário capitalista tardio de satisfação das necessidades humanas e o perverso circuito abstrato das mercadorias




Na educação da minha filha, comecei a me preocupar com a abstração das mercadorias e consequentemente, do processo de trabalho, a qual esvazia de sentido e materialidade o universo do trabalho e o custo da produção de mercadorias: quem as produziu, quanto tempo levou para realizar aquele trabalho e mais o valor inscrito nos objetos propriamente ditos, para cuja confecção mobilizou ainda produtos da natureza. As mercadorias, como tão bem nos alertou Marx, mesmo que inscritas num circuito fetichista das aparências, são o produto do trabalho humano. Se para uma criança é fundamental que ela desmistifique esse processo, para que saiba valorizar o objeto adquirido – não de uma forma sacralizada, evidentemente -, mas tendo em conta que este objeto tem um valor e um custo para o homem e para a natureza, tanto ao ser produzido, quanto ao ser consumido e especialmente se destruído em vão. Isto significa que desde pequenos somos e devemos ser responsáveis pelo que compramos, e depois pela forma como conservamos o que adquirimos.




A sociedade capitalista já adentrou o século XXI em ritmo acelerado de produção. Se no século XIX, aceleravam-se as máquinas para uma produção relativamente pequena, se comparados aos dias atuais, hoje aceleram-se desejos e necessidades para o consumo instantâneo e incessante de mercadorias. Fabricam-se rótulos e desejos a todo momento. Vestem-se, pois, estes desejos-mercadorias com os melhores trajes e sob promessas incontáveis de satisfação e prazer do(s) cliente(s): homem, mulher, empresa, crianças. Como na literatura oral, o sistema capitalista seria, assim, o equivalente de uma fada-máquina-madrinha-futurista-contemporânea de todos os nossos desejos e necessidades. Se nele há uma dimensão emancipatória e civilizadora: máquinas de lavar roupa, máquinas de lavar-louça, freezers e geladeiras, e ventiladores, carros, aviões, motos e bicicletas, ambulâncias, equipamentos hospitalares, descobertas científicas, por outro lado, há uma superprodução de mercadorias inúteis e fúteis, uma esteira de quinquilharias, para atender desejos insondáveis de homens, mulheres, velhos, crianças, entre outros, e cuja espiral representa concretamente uma ameaça ao planeta.



O aspecto mais perverso subjacente a todo esse reino de aparências é a submissão dos indivíduos ao caráter supostamente humanizador das mercadorias. Sou o que compro e não o que valho. Somos assim I-phones, I-pads, Ferraris e Machintoshs. Na França, por sua vez, os sem-viagem e os sem-férias são um equivalente dos sem-a-última-mercadoria de ponta no Brasil. Sem falar nos sem-exposição de arte, os sem-teatro, os sem-alguma forma de consumo também de custo cultural elevado. Donde, não é difícil que, nas sociedades capitalistas em que há tantos apelos materialistas e tantas desqualificações humanas em série, a partir de um determinado momento, os ditos losers, os perdedores, os feios, os rejeitados, os desajeitados e os sem-grana comecem simplesmente a roubar o que julgam que lhes é de direito.

Tudo isso se passa no seio de uma mesma sociedade: misógina - que deprecia ou tem repulsa pelas mulheres -, de um lado, e incensadora do ego masculino, do outro. Nunca vou esquecer de uma cena em que uma mulher, ao saber que sua amiga tinha arrumado um namorado, exclamou: « Mas que maravilha!!! ». Parecia que a jovem tinha tirado a sorte grande. Como muito bem ironiza uma página do Facebook: « Moça, você é machista! ». Se ela foi feliz naquela relação, possivelmente viveu também outras tantas emoções e experiências complexas que não vinham juntas com a carta de visita colada no moço que ela conquistou. Justamente porque as relações amorosas e humanas não são evidentes. Ninguém é totalmente bom nem totalmente mau. Ninguém é totalmente belo nem totalmente feio.




O fetiche da mercadoria e do erotismo, todavia, elevado à condição sine qua non de valorização e validação da potência masculina é mentiroso e ilusório, porque aponta apenas qualidades, tal qual um sedutor barato que faz promessas vãs à amada à luz da lua. Se as mulheres são muito mais do que um corpo, os homens também. Não é isso que determina exclusivamente se vão ser amados, valorizados e escolhidos. No entanto, outro dia, li num site que um homem processou a esposa na China, porque a bela mulher deu a luz a uma criança muito feia. Ele foi pesquisar e descobriu que a sua amada tinha sido totalmente « refeita », tendo antes sido muito feia. Não há como esconder certas verdades para sempre, mesmo graças ao benefícios da tecnologia. Ele se sentiu lesado e exigiu seus direitos, donde se vê que era a mercadoria-beleza que o interessava muito mais que a pessoa com quem ele casou.

As mulheres, prisioneiras ou não dessa fé no fetiche da mercadoria beleza, tornam-se, portanto, muitas vezes as principais vítimas desse sistema sexista, porque parecem figurar numa prateleira ou esteira de produção, em que todo aquele que não dispõe nem de dinheiro nem de atrativos para seduzi-las sente-se confiante de que basta agarrar o produto e sair correndo. Acrescente-se ainda a este quadro de produção distorcida de desejos o mercado paralelo e clandestino de produção e distribuição da pornografia, mais as redes internacionais de exploração sexual.

A tentação consumista da beleza, do corpo feminino jovem e a obrigatoriedade do gozo como condição credenciadora da subjetividade masculina assemelham-se, pois, às estragégias de vampiros à espreita de suas vítimas. Somente a usurpação desse bem, o sangue do outro, à custa do seu sacrifício e morte, assegura a vitalidade do vampiro-agressor. Como se trata de um pérfido alimento, ele também se esgota e se exaure, levando ao cometimento de novas agressões, tão aleatórias como a primeira, mas justificadas pela necessidade natural e instintiva do vampiro. Sede, fome e desejo compõem, assim, esse coquetel de excessos, cuja marca é a satisfação unilateral dos desejos e necessidades de um, e à revelia totalmente do consentimento e do prazer do outro.




Aquele que comete um estupro é, portanto, uma espécie de vampiro contemporâneo, um símbolo do deslimite provocado pelo estímulo desenfreado ao consumo de mercadorias e de pessoas. A falta da posse do dinheiro, contudo, parece não constituir nenhum impedimento, como supostamente acreditava a vã filosofia adamsmithiana. O mercado, suas necessidades e capacidades, em tese, segundo ele, se regulariam harmonicamente. “Não, caro Mister Smith”. Os que roubam a ordem estão longe de fazerem como Robin Hood e doar aos pobres. Ricos roubam para ficarem ainda mais ricos. Muito deles depositam, inclusive, em paraísos fiscais. Do mesmo modo, muitos homens não se contentam em estar atualizados sobre os padrões de beleza. Na impossibilidade de terem uma mulher conquistada pelas vias lentas do desejo e do enamoramento ou da sedução avassaladora da paixão correspondida, sequestram-na, agridem-na e, muitas vezes, face ao seu próprio horror, eliminam-na, como a querer apagar a própria culpabilidade.

AS MULHERES SÃO MUITAS arquétipos femininos e os estereótipos do discurso machista violento





« A mitologia é o sonhar coletivo dos povos. »
W. Boechat

A guisa de justificativa para ações jamais justificáveis, porque desumanizadoras e aniquiladoras do ser-mulher, a ideologia machista e mesmo o universo da propaganda têm em comum a veiculação de um único modelo feminino hegemonicamente válido: em geral, uma mulher jovem, bonita e com um corpo esbelto. Todas as mulheres que não se encaixam neste perfil são consideradas, ou pela idade, ou por um valor estético distinto do establishment (formas mais avantajadas ou demasidado magras), inadequadas, devendo se mobilizar para lutar pela porção da juventude, ou pelo chá mágico do emagrecimento ou por aquela fórmula de ginástica ou suplementos vitamínicos capazes de lhes dar os contornos físicos desejados.

Se o simplismo machista deduz que todos os problemas das mulheres resolvem-se ante a mera cópula masculina, como um argumento atenuador da violência injustificável cometida: « Feia como é, deveria agradecer. » Ou, quando a violência é cometida contra uma lésbica: « ela precisava mesmo de um homem ».

Como citamos as referências pictográficas relativas à violência ancestral e imemorial, podemos também recorrer à mitologia para introduzir no debate a noção de arquétipos femininos. Como bem sabemos, cada indivíduo é único e singular, mas há algumas características / traços gerais  que nos aproximam. O exemplo evidente no presente é a existência das « tribos » de jovens, enquanto expressão de gostos e tendências pessoais. No caso dos arquétipos, essa escolha não é deliberada, mas há uma propensão maior a se ter tais atributos físicos e gostar de determinadas atividades, ou a escolha de determinadas atividades terminar por configurar um padrão determinado de beleza ou físico feminino. Para que se tenha uma ideia, a noção mesma de beleza, intensamente valorizada por um determinado tipo de mulher, pode vir a constituir um elemento desvalorizante para outras. E é a esse tipo de diferença entre as mulheres mais à complexidade daí decorrente que gostaria de me ater para finalizar essa reflexão, com vistas à nossa convicção de que somos realmente diferentes e não devemos sofrer por isso. Pelo contrário, devemos reconhecer as nossas qualidades distintas, com vistas a fazer vibrar a corda de alegria que sustenta o nosso coração.


« Baianas » - Cândido Portinari

Somos belas ou parecemos bonitas quando somos / estamos felizes e realizadas no que fazemos, a despeito de qualquer padrão estético impositivo e autoritário da ordem. O exemplo mais recente vem das mulheres de etnia negra que durante muito tempo foram levadas a acreditar que não eram belas, porque não correspondiam ao ideal estético da mulher branca e de cabelos lisos. De quanta exuberância de sorrisos o mundo não estava privado por essa simples, porém trágica, inculcação de valores estéticos distorcidos da classe dominante e seu arsenal ideológico racista! Nem é preciso dizer que esse modelo de aparência visa a uma dominação do ser mais profundo de homens e mulheres, com seus respectivos pertencimentos sociais, culturais, étnicos e físicos. Deixar-se guiar exclusivamente por esta métrica do poder é uma forma de submissão ao sistema e alienação de si mesmo. Pergunta-se, inspiradamente em Chico Science: « De que lado você samba? »

Para voltar aos arquétipos e à mitologia, gostaria de narrar uma pequena história que li recentemente num livro  para crianças, que tem como pano de fundo as paixões e imperfeições dos deuses e deusas do Olimpo. A historinha é a seguinte:  Afrodite (Vênus), deusa da beleza e do amor, não se conformava que o belo Hipólito, filho de Teseu com uma Amazona, não se interessasse pelos assuntos do amor. Na verdade, Hipólito era um excelente arqueiro e gozava dos favores e cumplicidade de uma outra deusa, Ártemis (Diana), com quem dividia o prazer de caçar e correr a cavalo pelos bosques. Filho de uma Amazona e de um pai igualmente intrépido, não é de estranhar que o jovem Hipólito valorizasse mais a coragem e a agilidade do que os prazeres sensuais da carne. Afrodite, que era uma deusa muito temperamental e caprichosa, decidiu punir o rapaz pelas suas preferências, fazendo com que sua bela madrasta, Fedra, enamorasse-se dele.

As circunstâncias da intriga farão com que Hipólito, ao descobrir os intentos da madrasta e do dispositivo de uma aia que queria lhe preparar um filtro de amor com um pedaço de roupa do príncipe amado, rejeite abertamente a Fedra, que humilhada e envergonhada, dá cabo da própria vida. Deixa antes, porém, uma carta para o marido, Teseu, que sob o impulso da perda e do sentimento, ainda que não consumado, da traição, decide punir o próprio filho, que morre de forma cruel, tendo todos os ossos esmagados e as carnes despedaçadas por cães selvagens. Ártemis lamenta o fato, mas não interfere na intriga provocada por Afrodite. Esta, por sua vez, declara: “eu sempre venço. Ninguém pode se furtar ao amor.” Ou seja, a ela mesma, ao seu império e ditames.




 Logo, se mulheres-Afrodite são mais sensíveis à beleza, ao palco e às paixões, mulheres-Ártemis preferem a liberdade, muitas vezes a solidão dos campos, a equitação, a vida hippie, os valores alternativos, « bio » ou « orgânicos ». Pelo gosto do esporte e de atividades ao ar livre, e sendo mais ativas, podem também se enamorar de outras belas, como a deusa se enamorava das ninfas. Mulheres-Atenas, igualmente, podem se interessar por outras mulheres, mas no fundo o que realmente lhes atrai é o conhecimento, a teoria ou pesquisa científica, ou a política. São tão ativas quanto as mulheres-Ártemis, embora mais intelectualizadas e prefiram o conforto das cidades. Agora se se tratam de mulheres-Hera, um dom especial para a administração de negócios ou para a dona de casa perfeita manifesta-se. Mrs. Dalloway, personagem de Virgínia Woolf, é assim um misto de mulher-Afrodite com mulher-Hera, a qual brilha em recepções bem sucedidas para os investidores e parceiros de trabalho do marido. Bem sucedidas intelectuais, as mulheres-Atenas podem também ser, ao mesmo tempo, bem sucedidas mulheres-Hera e mulheres-Afrodite, o que significa exercer com maestria os domínios da inteligência, do charme e do poder. Nesse caso, tendem a desconfiar ou menosprezar as mulheres-Deméter, donas de casa e esposas maternais.



A poeta Adélia Prado seria um belo exemplo de fusão de mulher-Deméter e mulher-Atena, mas que não recusa sua porção de mulher-Ártemis e mulher Perséfone, símbolo da espiritualidade feminina. Vive no interior de Minas Gerais, destaca-se pelo talento de poeta, louva as virtudes da mulher-companheira do marido, mas sufoca-lhe a cidade grande e escreve verdadeiras odes de amor a Deus. Nesse sentido, não é indiferente também aos domínios do amor, tal como Santa Teresa D’Avila, que era apaixonada por Jesus Cristo, em plena fusão da mulher-Afrodite e da mulher-Perséfone.




Essa pequena digressão sobre os arquétipos femininos inspirados da mitologia grega servem apenas para ilustrar e enriquecer o debate feminista e seu combate contra a violência machista, na medida em que somos muitas. O prazer carnal, sexual, não corresponde, assim, à expectativa de felicidade e projeto de vida de todas as mulheres. As combinações de perfis de mulheres, fruto do cruzamento de arquétipos de diversas deusas, como na trigonometria são inúmeras. Os resultados complexos. Portanto, querer reduzir todas as mulheres às suas vaginas, dentadas ou não, constitui mais um exemplo da prepotência masculina e do profundo desconhecimento da alma feminina, que está mais para loba e selvagem, do que para esse ser amestrado, essa marionete sexy enfeitada em que querem nos transformar a todas.




Logo, muitas mulheres podem se apaixonar muito mais por um homem com quem travam uma longa e demorada discussão política e filosófica, ou por outro que cozinha bem, ou ainda por um homem engenhoso e criativo, por um homem esportista e que lhe convida para viajar para a Chapada Diamantina ou descobrir o deserto do Atacama, ou ainda para fazer um périplo de bicicleta ou a barco. As mulheres podem seguramente preferir homens que cuidam de animais com amor, outros que fazem meditação e, por que não também, homens sarados, artistas e que adoram um palco. Se há casais que nascem movidos pelo desejo de constituir família, outros se unem justamente em torno do desejo de não ter filhos, assim como há mulheres, à maneira da experiência da Maison des Babayagas em Montreuil (FR), que decidiram envelhecer juntas, segundo um espírito de solidariedade e cidadania femininas. O amor, a amizade, o desejo e a sexualidade também são construções relacionais. Isto significa que há muitos homens também que se sentem violentados com o assédio sexual feminino ostensivo e também preferem as múltiplas formas citadas acima de enamoramento. Para tantos e diversos arquétipos femininos, portanto, correspondem outros tantos masculinos, em busca do Graal - chave simbólica da descoberta de si mesmos e do mistério que nutre a reciprocidade amorosa e sexual feminina.

___________
Mione Sales é assistente social e doutora em Sociologia (USP), com formação em Literatura Comparada (Paris 3). Feminista, fundadora e participante do grupo de discussão « Lutas Lobas » no facebook, tem investido nas redes sociais como um dos espaços possíveis de militância. E-mail :  mionesales@gmail.com

::::::::::::::::::::::

BIBLIOGRAFIA

ESTES, C. Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. RJ, editora Rocco, 1994.
JUNG, C. G. O homem e os seus símbolos. RJ, Nova Fronteira, 1977.
MARX, K. A mercadoria. In : Id. O capital. Coleção Os economistas. SP, Nova Cultural, 1988.
WOOLGER, J.B. e WOOLGER, R. A Deusa Interior. Um guia sobre os eternos mitos femininos que moldam nossas vidas. SP, Editora Cultrix, 1987.

LINKS

[Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência – poema de Cecília Meireles, que inspirou o livro de L. Ruffato, Eles eram muitos cavalos]
[Chico Science, Samba de lado]

[Blog Sexismo e misoginia]

[La Maison des Babayagas]

[Mulheres, segundo Eduardo Galeano]

[Mulheres que correm com os lobos]

[Questionário Roda das Deusas]


2 comentários:

  1. Mione, parabéns! Um texto delicado, mas profundo sobre as questões que envolvem o tema. Serviu também como um alívio (e contraponto) para um absurdo que tinha acabado de ler no blog da Maria Frô: "Programa de TV da Dinamarca 'exibe' mulheres nuas para homens 'analisarem'".(http://mariafro.com/). Absurdo! Mas, voltando ao seu texto, fico com a mensagem: "o amor, a amizade, o desejo e a sexualidade também são construções relacionais". Rafael

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Rafael, pelo comentário. Segui a sua dica, li a matéria do blog da Maria Frô e depois a divulguei. Tinha acabado justamente de ver uma outra, de teor libertário divulgada por uma amiga do grupo Lutas Lobas (http://vieacheituacara.wordpress.com/2013/04/08/um-nu-honesto/), que era o oposto do que acontece na Dinamarca. São as contradições femininas, machistas e sexistas de um lado, mais as imensas possibilidades relacionais do outro. Como são grandes e desafiantes os nossos caminhos! Grande abraço.

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário e/ou impressão...